domingo, 29 de agosto de 2010

Aviso aos fãs!

Meus queridos, por motivos pessoais (que, acreditem, vão um pouco além da mera preguiça) ficarei por um curto período desvinculado desse riquíssimo blog - em outras palavras, deixarei de atualizar essa bagaça por uns tempos. Espero que vocês usem esse lamentoso período não com desespero, choros convulsos e lamúrias, mas, quem sabe, como uma oportunidade de se envolver com os filmes aqui já comentados: assistam os que ainda não assistiram, leiam as críticas que ainda não tiverem lido, enfim, são inúmeras as referências, não deixem nada para trás! modos de se distrair até o meu retorno não faltam. Conto com a força de vontade de vocês para resistirem com bravura e, sim, esperança, porque em breve estarei de volta para novamente deliciar vossos olhos.
Para não mostrar-me de todo ausente e insensível, os presentearei ocasionalmente com dicas, orientações, indicações, comentários rápidos sobre os filmes que tenho assistido, coisas bobas como enquetes, rankings, enfim, toda a sorte de idéias fortuitas que me vierem à mente.
E o mais importante: Aos amigos que prometi um acompanhamento semanal do grupo de cinema italiano que organizo com alguns amigos no IFCH, prometo aqui uma crítica tardia de todos os filmes exibidos, só não lhes garanto, por hora, um prazo definido. Com minhas desculpas, peço que usem esse espaço, mesmo assim, para falar sobre esses filmes, para debates, enfim, estarei presente, apenas não de modo constante e oficial. Não garanto críticas acabadas, mas informalmente estamos aí!

E, para fechar esse punhado de lamúrias, deixo aqui meu convite a todos os cinéfilos campineiros que se animem para nos acompanhar em nossas quintas-feiras italianas!



Cinema no IFCH


Esse semestre: Cinema Italiano

12/08 – 1900 - Bernardo Bertolucci

19/08 – Antes da Revolução - Bernardo Bertolucci

26/08 – O Conformista - Bernardo Bertolucci

02/09 – Morte em Veneza - Luchino Visconti

09/09 – O Leopardo - Luchino Visconti

16/09 – Obsessão - Luchino Visconti

23/09 – Roma, Cidade Aberta - Roberto Rossellini

30/09 – Ladrões de Bicicleta - Vittorio de Sica

07/10 – Umberto D. - Vittorio de Sica

14/10 – Noites de Cabíria - Federico Fellini

21/10 – A Doce Vida - Federico Fellini

28/10 – 8½ - Federico Fellini

04/11 – A Aventura - Michelangelo Antonioni

11/11 – Decameron - Pier Paolo Pasolini

18/11 – O Jantar - Ettore Scola

25/11 – Cinema Paradiso - Giuseppe Tornatore

Há a possibilidade de sessões em dezembro!

Local e horário:
Os filmes serão exibidos às 18:00hs, na sala IH-05 (segundo andar), no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, em todas as quinta-feiras do semestre, conforme indicado!

Organizadores:
Murilo Barbosa Simões, Ciências Sociais, 010
Rafael Agusto da Silva, Ciências Sociais, 010
Pedro Barbosa, Ciências Sociais, 010
Cristina Ferreira, História, 08

domingo, 22 de agosto de 2010

Último tango em Paris

A todos que prometi uma crítica de "Antes da Revolução" (segundo filme de Bertolucci e segundo filme de nosso cineclub), peço minhas desculpas: por problemas técnicos não conseguir assisti-lo novamente (a cópia pirata simplesmente rodou no meu computador sem som), de modo que não tive como fazer a crítica por hora. Como modo de humildemente me redimir a todos vocês, escrevi sobre essa que é outra obra-prima essencial desse belíssimo cineasta italiano - obra-prima que, infelizmente, não assistiremos no cineclub simplesmente por falta de tempo. Aos que não viram esse filme, recomendo fortemente que vejam, para uma visão mais ampla de Bertolucci do que a que o cineclub lhes proporcionará. E,claro, aguardem a crítica de Antes da Revolução, que virá em breve! (já encomendei o filme pela internet!)
Muito obrigado!


• título original:Ultimo Tango a Parigi
• gênero:Drama
• duração:02 hs 03 min
• ano de lançamento:1972
• estúdio:Les Productions Artistes Associés / Produzioni Europee Associati
• distribuidora:United Artists
• direção: Bernardo Bertolucci
• roteiro:Bernardo Bertolucci e Franco Arcalli, baseado em estória de Bernardo Bertolucci
produção:Alberto Grimaldi
• música:Gato Barbieri
• fotografia:Vittorio Storaro
• figurino:Gitt Magrini
• edição:Franco Arcalli e Roberto Perpignani
elenco:
• Marlon Brando (Paul)
• Maria Schneider (Jeanne)
• Maria Michi (Mãe de Rosa)
• Giovanna Galletti (Prostituta)
• Gitt Magrini (Mãe de Jeanne)
• Catherine Allégret (Catherine)
• Luce Marquand (Olympia)
• Marie-Hélène Breillat (Monique)
• Catherine Breillat (Mouchette)
• Jean-Pierre Léaud (Tom)
• Massimo Girotti (Marcel)
• Veronica Lazar (Rosa)
• Rachel Kesterber (Christine)
Nota: 10,0 (parâmetro/categoria: drama intimista)

Talvez a principal pergunta que se deva dirigir a essa linda obra poética de Bertolucci seja: aquele apartamento vazio, sem móveis, sem história, sem passado ou futuro, seria o refúgio onde os protagonistas vão se esconder da vida – um mero escape – ou seria a própria vida deles – a vida sincera e transbordante que eles nunca veriam do lado de fora? Evidentemente não se trata de uma pergunta a ser respondida; quem sabe não seja mesmo a pergunta que norteie uma análise mais profissional – como é digno de Bertolucci, a psicanálise permeia todo o filme, mas está muito além de mim encaixar uma obra-prima em uma teoria – que por hora não compreendo. Todavia, essa pergunta sussurrou-me suas angústias de modo suficientemente perturbador para que eu resolva explorá-la – sem respondê-la – a fim de escrever essa que talvez seja a mais pessoal dentre as críticas aqui trabalhadas – e não sei ao menos se posso chamá-la crítica, se isso melhor denominar-se-ia uma exposição, um externamento de sentimentos e sensações, ou se, afinal, não lhe cabe nome algum, do mesmo modo que nome algum cabia àqueles sutis e carregados personagens de Marlon Brando e Maria Schneider.
Dentro daquele apartamento tudo é relevante; lá não há excessos, por mais exagerado que seja o ambiente. Tudo o que seria excessivo foi descartado, estejamos falando seja de mobília, seja de nomes – o que nos leva a pensar que talvez o único modo de conhecer uma pessoa seja não a conhecendo; o mistério cria um contexto de intimidade desnuda onde não há nada a se esconder, por mais que todo o resto esteja escondido. Provavelmente o que estou tentando dizer é que, sem se esconderem atrás de um nome, de uma reputação, de um voto de amor ou de amizade; sem se esconderem mesmo atrás de um passado, é possível aos personagens desnudarem sem constrangimento o que realmente são – e esconderem atrás de si seu nome, seu amor, seu passado. Por mais que haja perguntas a serem feitas, não há respostas a serem dadas.
Parece que estamos em um lugar onde as instituições não chegam, onde não há coerção; e o sexo, como expressão máxima da vontade, como expressão mesma do Indivíduo, explode com total naturalidade desde a primeira cena em que os personagens se encontram no apartamento.
Por outro lado, o apartamento não é um lugar feliz. Parece que os personagens retornam sempre pra lá em busca de algo que não encontram – e de fato, eles acabam se prendendo a este lugar de modo até obsessivo. O apartamento é só um espaço, e como um espaço, parece que lá falta alguma coisa. Alguma coisa além das mobílias. Assim como nos personagens falta algo além de seu nome e seu passado.
Lá fora, eles ganham nome. Jeanne tem um noivo (Jean-Pierre Léaud), um noivo que quer transformar o amor deles em cinema. O que talvez seja a metáfora mais completa que alguém já tenha encontrado para expressar a artificialidade dos relacionamentos – pelo menos dos relacionamentos convencionais, aqueles que se passam “do lado de fora”. Ouvimos sempre falar na brutal diferença que distancia um beijo cinematográfico de um beijo real. Então: todos os beijos que ele dá em Jeanne são cinematográficos. Seu reencontro, suas declarações de amor, até seu pedido de casamento: tudo é cinema, é arte, é atuação. É tudo como se fosse uma reprodução, uma imagem, uma representação. A questão não é apenas não ser autêntico ou não ser sincero, é muito mais: é que tudo o que eles sentem só pode ser sentido através da lente de uma câmera.
Se o cinema representa a vida, o amor deles representa o amor deles. Em última análise, tudo o que eles vivem é representado. E mesmo se ousarmos encarar o cinema como algo entre a vida e a arte – como nos disse Godard – sabemos: a vida deles é como algo entre uma vida e nada. Nesse meio termo, deslizamos para o vazio – o vazio que permeia o amplo espaço do apartamento sem mobília.
Marlon Brando, por sua vez, é Paul. Paul acabou de vivenciar o suicídio de sua esposa. Americano, ele errou por muitos anos até terminar em Paris – o que o torna um personagem desnorteado, sem horizonte (quadro que se completa quando ele se declara ateu; e proíbe sua sogra de trazer um padre para o enterro de sua esposa). É como se ele entendesse o seu suicídio, mesmo que ela não tenha deixado cartas ou quaisquer explicações. Não apenas o suicídio da esposa; é como se ele entendesse o suicídio – algo que não faz sentido na cabeça da velha religiosa.
Quando viva, sua esposa tinha um amante – e ele o sabia, e era como se isso também pra ele fizesse sentido, ao mesmo tempo em que não fazia. Porque de certo modo o vazio é coerente. E não saberemos o que ela buscava ao vestir o amante com um macacão exatamente igual ao de Paul, ou ao tentar arrancar o papel de parede do quarto do amante com as próprias mãos, a fim de deixar o lugar semelhante ao quarto onde dormia com o marido. Assim como não saberemos o que Paul e Jeanne buscavam naquele apartamento. É como se, ao buscar algo, não buscassem nada.
Qual das duas vidas que cada um vive é a verdadeira? Sem que tal pergunta fosse respondida, a partir de um momento essas vidas cessam de ser paralelas e começam a interferir uma na outra. Jeanne está em uma cena do filme de seu noivo (que ao mesmo tempo é a vida de ambos) em que está experimentando o vestido de noiva. Com uma terrível ironia ela compara o casamento ao casamento dos pôsters, e define o casal como trabalhadores vestidos de macacão que repetidamente consertam o casamento como se conserta o motor de um carro. Então define o amor: “os trabalhadores vão a um lugar secreto. Eles tiram os macacões e viram homens e mulheres de novo, e fazem amor”. De repente ela abandona as filmagens, sem avisar, foge para o apartamento e declara sua paixão a Paul em um dos momentos mais marcantes do filme.
Mais tarde, quando ela retorna ao apartamento e não o encontra mais, desespera-se, e, de um modo muito simbólico (que para a psicanálise deve render interpretações fantásticas), acaba convidando seu noivo a irem morar lá.
Mas Paul na verdade não a tinha abandonado: ele tinha resolvido que começariam tudo de novo, e o mais importante; sem o apartamento: começariam uma vida do lado de fora. Mas, ao contrário das expectativas, em lugar do entusiasmo e alegria sobreveio a Jeanne uma agonia inexplicável; o espaço vazio do apartamento foi substituído pelo vazio da vida; e Jeanne não gostou de descobrir quem Paul era – por mais que durante quase todo o filme ela quisera e tentara conhecê-lo. E eis que, o que talvez fosse somente o primeiro tango, acabou sendo o último. Ao se conhecerem, eles se desconheceram, e o que seria o início de um amor foi na verdade seu fim.
Esta que sem dúvida é uma das maiores obras já feitas sobre o vazio existencial apresenta ao homem moderno, através de uma poesia linda e amargurada, as suas duas opções únicas: o imenso vazio de uma vida sem sentido ou o medíocre vazio de um apartamento sem mobília. E se na instabilidade inerente a este encontramos a estabilidade inerente àquele, e vice-versa, nossa escolha não é mais que uma questão de perspectiva: não se trata de uma esperança. Qual das opções é a vida real e qual é a sua catarse: eu não saberia dizer sem ser simplista. E é exatamente isso que torna a última cena tão enigmática: Jeanne ensaia o que falará para o noivo sobre o homem morto em sua varanda (a varanda de um apartamento que finalmente tem seus móveis): “Eu não sei quem ele é”, “não o conheço”; e nós não sabemos – e muito menos ela o sabe – se tais frases, afinal, são falsas ou reais.

- Francis Bacon
Essa “crítica” (por falta de melhor designação) não estaria de jeito nenhum completa, nem tão pessoal, se eu não citasse aqui um nome fundamental: Francis Bacon. Não confundir com o filósofo! Trata-se simplesmente do meu pintor favorito, o que mais me fascina, e ao mesmo tempo mais me agonia. E por que estou citando o seu nome? Porque eu surpreendi-me quando vi, logo no início do filme, na introdução, durante a apresentação de algumas referências técnicas, dois quadros do Bacon sendo exibidos na tela. Certo de que essa iniciativa do Bertolucci não seria de jeito nenhum aleatória, pesquisei, e descobri algo que eu sou leigo demais para que tivesse percebido sozinho: a fotografia do filme, de Vittorio Storaro, é toda inspirada em quadros do Bacon.
Uma sacada genial que, ao menos na minha cabeça, é absolutamente coerente: sempre vi Bacon como o pintor do vazio, da desilusão, do desespero. Da irracionalidade e da falta de sentido. O próprio já disse: “O homem compreende que é um acidente, um ser absolutamente fútil, que deve jogar até o final sem motivo”.
Se você quiser saber um pouquinho mais sobre Francis Bacon e ver alguns quadros dele, entre no álbum dedicado a ele em meu orkut:
http://www.orkut.com.br/Main#Album?uid=4899410086037152614&aid=1257430478

- Complemento
Como complemento à minha “crítica” – que por ser demasiadamente pessoal deixou a desejar referências a quesitos técnicos e curiosidades – deixo aqui recomendado um link sobre o filme que achei realmente interessante e elucidativo:
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:ZHA9dtq4IDsJ:www.blogpaedia.com.br/2008/12/10-mitos-que-ainda-pairam-sobre-o-filme.html+ultimo+tango+em+paris+criticas&cd=22&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br



- Prêmios
Círculo dos Críticos de Cinema de Nova York, EUA Prêmio de Melhor Ator
Academia Britânica de Cinema e Televisão, Inglaterra Prêmio de Melhor Ator
Indicado ao Oscar de Melhor Ator (Marlon Brando) e Diretor (Bernardo Bertolucci)

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

1900


Título original: Novecento
País: França, Itália, Alemanha Ocidental
Idioma: italiano
Duração: 320 min.
Technicolor
Direção: Bernardo Bertolucci
Produção: Alberto Grimaldi
Roteiro: Franco Arcalli, Bernardo Bertolucci, Giuseppe Bertolucci
Fotografia: Vittorio Storaro
Música: Ennio Morricone
Elenco: Robert De Niro, Gérard Depardieu, Dominique Sanda, Francesca Bertini, Laura Betti, Werner Bruhns, Stefania Casini, Sterling Hayden, Anna Henkel, Ellen Schwiers, Alida Valli, Romolo Valli, Bianca Magliacca, Giacomo Rizzo, Pippo Campanini, Donald Sutherland
Nota: 9,2 (parâmetro/categoria: épico/?)

- Algumas considerações iniciais
Antes de começar a discorrer sobre esse filme, queria compartilhar com vocês um susto que levei. Se, como eu, acham que 1900 é um filme grande – mais do que grande, imenso – mais do que imenso, absurda e insuportavelmente interminável, vão entender o que eu estou falando. Li em um site aparentemente confiável (do jornal Estadão: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,o-epico-1900-de-bernardo-bertolucci-sai-em-dvd,412061,0.htm) que o filme foi concebido por Bertolucci com oito (eu disse oito) horas de duração, mas foi mutilado pelos produtores. Além disso, teria sido picotado mais uma vez pela censura brasileira, já que estávamos em ditadura militar (a obra é de 1976).
Bom, passado esse susto inicial, quero primeiro apontar umas características gerais que percorrem os 320 minutos de filme e que contribuem para torná-lo uma obra-prima, para depois apontar um defeito grave que ele contém, e enfim encerrar minha (tentativa de) crítica com observações mais pontuais. Suponho que quem enfrentou um filme um pouco mais extenso que os demais não terá maiores problemas em uma crítica um pouco mais extensa que as demais!
1900 logo de início apresenta todas as características necessárias para ser o melhor filme do mundo: é dirigido por Bernardo Bertolucci (um Bertolucci amadurecido, que já realizara obras-primas como Antes da Revolução, O Conformista e O Último Tango em Paris), é protagonizado por Robert De Niro e Gérard Depardieu, a música é de Ennio Morricone (a divindade onipresente das trilhas sonoras); temos ainda a fotografia maravilhosa e incriticável de Vittorio Storato. E, principalmente, a promessa de uma temática monumental: a obra abrangeria meio século de História, e não nos referimos a qualquer século; trata-se da primeira metade do complexo e conturbado século XX, o que englobaria duas guerras mundiais e a ascensão tanto do fascismo quanto do movimento comunista.
Infelizmente não é o melhor filme do mundo, mas é uma obra-prima sem comparações no cinema. A promessa que ele nos apresenta de antemão foi cumprida: não de forma didática, sistemática, mas abrindo mão de um recurso que, quando bem utilizado, cria filmes maravilhosos: a abordagem de um macrocosmo histórico, social e político através do viés de um microcosmo, que contém, em si, todas as características desse macrocosmo. É um formato que consegue um envolvimento muito maior, abordando a História de um jeito muito menos distante: é como se ela tivesse presente em cada ação dos personagens, em cada cena que se segue, e nos olhos de cada um que assiste. O condensamento da História num microcosmo tem o dom único de mostrá-la como um agente realmente atuante, presente e onipresente, não como um conceito, uma idéia: é como se trocássemos o método pela experiência. É o que faz Michael Haneke em seu recente A Fita Branca; é o que fizera muito tempo atrás Bertolucci, falando de meio século da história de um país através da história de dois amigos, um patrão e um camponês, em algum lugar do ainda feudal sul da Itália.
Sob essa linda e palpável perspectiva Bertolucci, partindo da morte de Giuseppe Verdi, o que talvez para ele simbolize o início do século – ou pelo menos o início do século para a Itália –, consegue acompanhar o início do movimento comunista, a conscientização dos camponeses, os primeiros movimentos de greve, os grupos depois efetivamente organizados, as prisões; consegue acompanhar as raízes do fascismo, desde sua situação de submissão à classe dominante até a tomada do poder – e sua queda. Consegue acompanhar a História de seu país, e consegue a autoria de uma obra-prima.
E tudo isso a partir do formato único e maravilhoso do cinema europeu, que, sem as hipocrisias quer permeiam, por exemplo, o puritanismo do cinema norte-americano (aqui, claro, falando em termos absurdamente genéricos), impedem que uma representação da vida (o que além disso seria o cinema?) discorra com naturalidade – uma bobagem que potencializa em muito a distância entre a representação e o representado. O cinema europeu, em sua generalidade, tende a representar a vida de um modo muito mais natural e sincero, e isso é claramente perceptível em Bertolucci, e ainda mais em 1900. Podemos captar tudo isso em cenas como aquela que acompanha o abate de um porco para alimentação dos camponeses, mas o exemplo mais bem-acabado será sempre o tratamento dispensado à sexualidade – seja desde a explicitação sem constrangimentos de cenas de nudez e de sexo, seja até o próprio evidenciamento que se dá à sexualidade dos personagens – o que entra em forte contraste com a Hollywood à qual muitos se acostumaram, uma grande produtora de personagens assexuados.

- Maniqueísmo
De fato trata-se de um ótimo filme, porém apesar de tudo apresenta um problema sério, e esse problema, claro, é o maniqueísmo. Um enfático maniqueísmo referente a uma dicotomia muito rígida que antagoniza não somente patrões e empregados (embora haja essa dicotomia também), mas principalmente (em termos da força que ela assume), comunistas e fascistas. Oras, o capataz interpretado por Donald Sutherland é o demônio. E amante dele, Regina (interpretada por Laura Betti), que é prima de Alfredo, fica atrás apenas por uma distância de representatividade (em termos de “mau”, ele é o protagonista e ela a coadjuvante). Basta que eles surjam em cena para que se crie instantaneamente uma atmosfera absoluta de mal-estar, com direito a uma trilha sonora funesta. Contudo, claro, seria até compreensível se o maniqueísmo que endemoniza os fascistas fosse referente apenas aos aspectos estéticos. Mas não é. De um modo muito simbólico, acompanhamos o capataz Attila, representante máximo do fascismo no filme, assassinando psicoticamente (trazendo-nos inclusive uma cena que beira o trash) os que talvez sejam três dos maiores símbolos de pureza, ingenuidade e bondade que temos: um gatinho fofo, uma criança (que ele estupra antes de matar) e uma senhora viúva. É claro que essas três figuras não são casuais. Também é claro que não possuem qualquer embargo político: é um impacto muito diferente do que proporciona ver fascistas matando comunistas ou quaisquer opositores ou dissidentes do governo de Mussolini. É um impacto que afeta muito mais aquela emoção que é condicionada por nossa moral, é, em outras palavras, um impacto apelativo, e com poucas (nenhumas) relações com o contexto sócio-político. Concebido exclusivamente para que odiemos o personagem-símbolo do fascismo. O que (claro!) consegue com muito êxito: é impossível não se regojizar quando Attila é perfurado pelas enxadas dos camponeses furiosos (cena que se projeta duas vezes durante o filme).
Existe também a dialética entre patrões e camponeses, mas essa já se apresenta mais bem-enquadrada ao contexto histórico que o filme representa e, mesmo que não encontremos também aqui imparcialidade, obviamente não se trata isso de um defeito, pois se é difícil exigir imparcialidade de uma aula de história é estúpido que se o exija de uma obra de arte. E mesmo que o eixo principal do filme nos apresente os camponeses como heróis imaculados, alguns pequenos cuidados são tomados: o momento em que é perguntado a Olmo (Gérard Depardieu) o significado da frase “o comunismo é a juventude do mundo” seria perfeito para que o protagonista do movimento camponês discorresse (sob muita pompa estética) um eloquente discurso marxista; mas trata-se de um camponês, um personagem sem instrução, cujo impulso revolucionário vem da experiência e da vontade, não de um saber intelectual, e o que acontece é que ele fica sem resposta. Além disso, não temos aqui o herói perfeito e ideal: por exemplo, por várias vezes Alfredo lhe indaga “você roubou a pistola de meu pai. Por que não a usa?”, e ele não somente não a usa, mas é o primeiro camponês que, ao final do filme, cede à ordem de desarmamento. Alfredo, por sua vez, interpretado por Robert De Niro, leva a vida vazia de sua herança aristocrática, mas mantém desde sua infância uma personalidade ambígua (eu ia dizer multifacetada, mas acho que no ambiente bipolarizado que se criou nesse contexto histórico isso seria exagero). Quando criança, Alfredo em um momento se diz dono não apenas dos bichos-de-seda de Olmo, mas do próprio Olmo; em outro momento se diz socialista (socialista dos bolsos rasgados, como eles falavam). Quando adulto, já impregnado pela lógica que taxava os comunistas de subversivos e os culpava por qualquer tragédia que acontecesse, presencia por muitos minutos os Camisas-Negras espancando Olmo (sob a acusação de que teria assassinado a criança que na verdade foi Attila que matou), e, mesmo sabendo que Olmo não fora o culpado, pois passara a tarde com Ada (Dominique Sanda), não os ordena que parem. Porém, após anos e mais anos convivendo com a incapacidade de demitir Atilla de seu cargo de capataz, imediatamente o faz assim que o flagra invadindo a casa de Olmo (que estava fugido). E temos também o avô de Alfredo, também Alfredo, interpretado por Burt Lancaster (personagem que lembra muito o aristocrata decadente que Lancaster interpreta em O Leopardo, de Luchino Viconti), que é permeado de incertezas e frustrações, mas que é sobretudo carismático. Que acaba se suicidando, meio que levando consigo os resquícios de dignidade de sua linhagem.
Claro que temos o pai de Alfredo como encarnação da aristocracia perversa. É o tipo de gente que manipula o testamento do pai para adquirir pra si a herança inteira, que substitui os empregados por máquinas e os quer obrigar a trabalhar mais por menos em prol da recuperação das plantações perdidas pela tempestade. Mas tudo isso soa muito mais realista e legítimo quando comparado ao fascista que tem prazer em exterminar gatinhos, crianças e viúvas.

Não obstante tudo o que foi apontado neste tópico, é importante considerar que a Itália viveu o fascismo na pele; poderíamos de certa forma apontar aqui uma espécie de “trauma” coletivo, do qual seria muito exigir que Bertolucci, italiano fruto de suas condições materiais, escapasse. Em outras palavras, o maniqueísmo é um erro grave, mas podemos decerto dar algum desconto.

- Quase dois filmes
Esse viés comunista que o filme aparentemente assume manifesta-se de modo particularmente intenso e claro na primeira parte – essa sim, um verdadeiro “épico”, segundo as categorias mais elementares do termo: um enredo simples, personagens “tipos”, a heróica luta entre o bem e mau, a estética do espetáculo (o que rende cenas lindas e emocionantes como a em que os camponeses deitam-se na frente dos cavalos das autoridades para impedi-los de passarem).
De fato, se o filme se limitasse à primeira parte (ou se encontrássemos na segunda parte o mesmo formato da primeira), eu o descreveria em poucas linhas como o melhor épico que já assisti, o que – eu acrescentaria – não significa algo tão maravilhoso assim, já que a categoria épico encerra em si limitações muito profundas. É claro que eu me delicio muito mais assistindo o embate entre o movimento camponês do Sul da Itália contra a aristocracia feudal na primeira metade do século XX do que ser obrigado a me posicionar do lado dos sulistas escravocratas na Guerra Civil norte-americana e testemunhar o romance novelesco de protagonistas rasos (estou me referindo, claro, a “...E o vento levou”, um épico por excelência). Mas mesmo assim, o simples fato de ser um épico já impõe problemas muito sérios, como a redução de personagens a caricaturas.
Mas 1900 não se limita a sua primeira parte, e não se limita à categoria de épico. A segunda parte se encarrega de aprofundar psicologicamente os personagens, tornar bem mais complexa a temática trabalhada e, principalmente, tornar o filme menos linear e mais confuso. E tudo isso sem abandonar de jeito nenhum a abordagem política e histórica – ao contrário, a construção dos personagens evidencia eficientemente o quão eles são determinados pelas condições materiais de seu tempo (isso fica bem nítido, por exemplo, quando as dificuldades no casamento de Alfredo e Ada e a atração desta por Olmo demonstram ter forte fundamento na bipolaridade político-ideológica do momento). É como se a psicologia e a História se fundissem para construir os personagens e as relações entre eles – o que provavelmente corresponderá à mais realista reprodução da realidade.
Antes de mais nada, a segunda parte é muito mais Bertolucci, e quando digo isso me refiro não apenas a tudo isso mas também à estética. Deixando-nos a impressão de que toda a primeira parte, com suas três horas de duração e todos os seus momentos maravilhosos – o “melhor épico que já assisti” – é simplesmente uma preparação para a segunda parte, que não é um épico, mas algo sem definição.
É certo que boa parte das aberrações mencionadas encontram-se na segunda parte (é nela que morrem a criança e a viúva). É certo também que a primeira parte conta com trechos psicologicamente trabalhados – o personagem de Burt Lancaster resolve-se definitivamente pelo suicídio ao tentar seduzir (ou estuprar) uma jovem camponesa e perceber-se sexualmente impotente (o que sob uma leitura psicanalítica estaria intimamente relacionado à decadência que o cerca e que o atormenta).
Entanto é na segunda parte que essa abordagem mais aprofundada surge não em pontos específicos, mas no próprio eixo de condução do filme. O que torna-se mais explícito seja nos momentos com a prostituta epilética, seja na relação entre Ada (então já esposa de Alfredo) com Olmo, que reprimem uma tendência inconsciente de recíproca aproximação e desejo, seja na expressão dos ciúmes de Alfredo, ou seja em outros momentos.
Mas como aliar psicologia e política, e deixar as coisas claras? O pressuposto é que filme político só funciona com personagens “tipos”, superficiais, caricatos. E de fato, o único diretor que eu conheço, a princípio, que aborda esses dois aspectos da vida humana simultaneamente em seus filmes é o Bertolucci – e certamente é isso que o torna tão difícil para mim. Sim, ouso reconhecer que estou aqui escrevendo sobre um diretor com o qual enfrento dificuldade, e de jeito algum se trata essa de uma crítica acabada, mas antes de um exercício árduo de compreensão. Bertolucci é difícil – e nem o mais entendido vai poder dizer que ele não o é! – porque política pressupõe uma direção, enquanto profundidade psicológica pressupõe uma névoa difusa. Isso se torna muito claro quando se pensa em termos de roteiro: os filmes intimistas encaminham-se para as direções mais variadas possíveis, enquanto filmes políticos tendem a ser mais previsíveis – filmes históricos, por motivos óbvios, tendem a uma previsibilidade ainda maior.
Se 1900 seguisse a linha da primeira parte, seria mais do que óbvio, pelo menos na minha cabeça, que Alfredo, o personagem de Robert De Niro, terminasse transmutado em um aristocrata perverso, e que ele e Olmo se enfrentassem (não necessariamente fisicamente) em uma dialética absurdamente classista e determinista. Ou, na melhor das hipóteses, o Alfredo mudasse de lado, abdicasse de suas pompas e se inserisse na luta ao lado dos camponeses. Só era possível a esse personagem um dos extremos, eram apenas essas as posições e mais nenhuma, mas não foi nenhuma delas que aconteceu; os dois protagonistas permaneceram simultaneamente amigos e inimigos durante absolutamente todo o decorrer do filme.

- Bertolucci e sua política: a cena final
E o que aconteceu não foi nada menos do que o seguinte: sem sequer passar-lhe pela cabeça essa idéia maluca de legitimar a luta de classes (e, o que seria ainda mais raso, fixar-se a um lado mesmo depois que a História tornasse esse lado um absurdo existencial), o que Bertolucci fez foi SATIRIZAR a luta de classes, do jeito mais debochado, cômico e, principalmente, cruel que poderia fazê-lo. E é por isso que direi aqui que a genialidade do filme reside na cena final. Porque é nela que ele quebra toda a esperança de libertação que ele segura entre os dedos por horas e horas de filme para, de uma só vez, numa tacada fria e profundamente sóbria, mostrar-se desiludido e vazio de expectativas.
1900 não é um filme pontual, pois trata de meio século de história. Alguns críticos disseram que isso faz com que ele perca o foco, mas não é assim que vejo. Para que se entenda o que estou a dizer, resumirei com o seguinte: durante todo o período histórico em que o movimento comunista mostrou-se a verdadeira esperança para a libertação das classes baixas do julgo da exploração, o filme se apresentou assumidamente comunista e esperançoso. No momento em que esse movimento se apresentou nitidamente frustrado – oras, eles tinham ganhado, eles derrubaram os fascistas, eles venceram, estavam todos festejando animados e felizes, mas eis que o Comitê Nacional de Libertação, sim, aquele que os representava no novo governo (ao mesmo tempo a eles, aos liberais, e a gente de todo o tipo) ordenou-lhes que entregassem todas as armas!, e de prontidão o próprio Olmo concordou em entregá-las, lançando mão de um discurso que legitimasse isso – oras, nesse momento também o próprio filme se apresenta frustrado. E é uma frustração amarga, pois ela não traz nem em seu mais remoto ser um resquício de esperança. E o que nos resta é rir – rir muito – dos dois velhos amigos estupidamente brigando para sempre.
Se a luta de classes é eterna, talvez a pergunta que me faço a cada filme do Bertolucci – qual é, de uma vez por todas, sua posição política? – seja, de fato, irrelevante. Melhor talvez o explicaria Kafka: “Há esperanças; só não para nós”.


- 1900 ganhou o Prêmio Bodil de Melhor Filme Europeu (1976)