quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Dogma 95

Como prometido, aqui vai minha primeira dica.

O cinema conheceu em sua história várias escolas, várias correntes. O mais famoso exemplo talvez seja a Nouvelle Vague, movimento francês liderado por figuras como Godard e Truffaut, e que foi em grande parte responsável por elevar o cinema ao status de arte. Temos ainda a ramificação no cinema do movimento surrealista, onde temos grande destaque para as obras-primas que Luis Buñuel realizou em conjunto com Salvador Dalí, Um Cão Andaluz e A Idade do Ouro; e o conhecido expressionismo alemão da década de 20, escola responsável por pérolas como O Gabinete do Dr. Caligari, Nosferatu e Metrópolis.

Mas provavelmente, entre todos esses, o movimento que eu mais goste seja o Dogma 95. Eis seus dez preceitos:

- Filmar em locações, sem cenários

- Filmar com som direto e sem trilha sonora

- Usar câmara no ombro

- Filmar em cores e sem iluminação artificial

- Abolir filtros e trucagens

-Abolir ações superficiais (assassinatos, armas, etc.)

- Sem referências temporais ou geográficas

- Os filmes de gênero são inaceitáveis

- O filme deve ter versão final em 35 mm.

- O diretor não deve ser creditado


O resultado de tudo isso é uma estética dialeticamente oposta à que Hollywood nos acostumou e filmes aos quais dificilmente nos ajustamos. E o mais interessante: trata-se de um choque não somente sobre a concepção comercial de cinema, mas mesmo sobre o que a maioria de nós entende como cinema artístico. Afinal, estamos imensuravelmente longe da estética impecável e deliciosa de um Tarkovsky ou mesmo de um Bertolucci.

O principal articulador dessa idéia maluca é Lars von Trier (um dos meus cineastas favoritos), diretor dinamarquês que tornou-se mundialmente reconhecido com obras posteriores ao movimento Dogma, principalmente Dogville, de 2003, estrelado por Nicole Kidman. Recentemente realizou o que talvez seja o terror mais agoniante, explícito e bem acabado – e ao mesmo tempo lindo – de todos os tempos: Anticristo, um dos meus filmes favoritos, embora eu absolutamente não o recomende a todos.
Curiosamente, Anticristo, seu último filme, é dedicado a Tarkovsky.


A quem tiver curiosidade de conferir o que foi o Dogma 95, recomendo Os Idiotas, filme de Lars von Trier de 1998 – mas não esperem algo divertido ou minimamente agradável; ao contrário, preparem-se para um espanto em todos os sentidos do termo; ou, pelo menos, para duas horas bem cansativas.

domingo, 29 de agosto de 2010

Aviso aos fãs!

Meus queridos, por motivos pessoais (que, acreditem, vão um pouco além da mera preguiça) ficarei por um curto período desvinculado desse riquíssimo blog - em outras palavras, deixarei de atualizar essa bagaça por uns tempos. Espero que vocês usem esse lamentoso período não com desespero, choros convulsos e lamúrias, mas, quem sabe, como uma oportunidade de se envolver com os filmes aqui já comentados: assistam os que ainda não assistiram, leiam as críticas que ainda não tiverem lido, enfim, são inúmeras as referências, não deixem nada para trás! modos de se distrair até o meu retorno não faltam. Conto com a força de vontade de vocês para resistirem com bravura e, sim, esperança, porque em breve estarei de volta para novamente deliciar vossos olhos.
Para não mostrar-me de todo ausente e insensível, os presentearei ocasionalmente com dicas, orientações, indicações, comentários rápidos sobre os filmes que tenho assistido, coisas bobas como enquetes, rankings, enfim, toda a sorte de idéias fortuitas que me vierem à mente.
E o mais importante: Aos amigos que prometi um acompanhamento semanal do grupo de cinema italiano que organizo com alguns amigos no IFCH, prometo aqui uma crítica tardia de todos os filmes exibidos, só não lhes garanto, por hora, um prazo definido. Com minhas desculpas, peço que usem esse espaço, mesmo assim, para falar sobre esses filmes, para debates, enfim, estarei presente, apenas não de modo constante e oficial. Não garanto críticas acabadas, mas informalmente estamos aí!

E, para fechar esse punhado de lamúrias, deixo aqui meu convite a todos os cinéfilos campineiros que se animem para nos acompanhar em nossas quintas-feiras italianas!



Cinema no IFCH


Esse semestre: Cinema Italiano

12/08 – 1900 - Bernardo Bertolucci

19/08 – Antes da Revolução - Bernardo Bertolucci

26/08 – O Conformista - Bernardo Bertolucci

02/09 – Morte em Veneza - Luchino Visconti

09/09 – O Leopardo - Luchino Visconti

16/09 – Obsessão - Luchino Visconti

23/09 – Roma, Cidade Aberta - Roberto Rossellini

30/09 – Ladrões de Bicicleta - Vittorio de Sica

07/10 – Umberto D. - Vittorio de Sica

14/10 – Noites de Cabíria - Federico Fellini

21/10 – A Doce Vida - Federico Fellini

28/10 – 8½ - Federico Fellini

04/11 – A Aventura - Michelangelo Antonioni

11/11 – Decameron - Pier Paolo Pasolini

18/11 – O Jantar - Ettore Scola

25/11 – Cinema Paradiso - Giuseppe Tornatore

Há a possibilidade de sessões em dezembro!

Local e horário:
Os filmes serão exibidos às 18:00hs, na sala IH-05 (segundo andar), no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, em todas as quinta-feiras do semestre, conforme indicado!

Organizadores:
Murilo Barbosa Simões, Ciências Sociais, 010
Rafael Agusto da Silva, Ciências Sociais, 010
Pedro Barbosa, Ciências Sociais, 010
Cristina Ferreira, História, 08

domingo, 22 de agosto de 2010

Último tango em Paris

A todos que prometi uma crítica de "Antes da Revolução" (segundo filme de Bertolucci e segundo filme de nosso cineclub), peço minhas desculpas: por problemas técnicos não conseguir assisti-lo novamente (a cópia pirata simplesmente rodou no meu computador sem som), de modo que não tive como fazer a crítica por hora. Como modo de humildemente me redimir a todos vocês, escrevi sobre essa que é outra obra-prima essencial desse belíssimo cineasta italiano - obra-prima que, infelizmente, não assistiremos no cineclub simplesmente por falta de tempo. Aos que não viram esse filme, recomendo fortemente que vejam, para uma visão mais ampla de Bertolucci do que a que o cineclub lhes proporcionará. E,claro, aguardem a crítica de Antes da Revolução, que virá em breve! (já encomendei o filme pela internet!)
Muito obrigado!


• título original:Ultimo Tango a Parigi
• gênero:Drama
• duração:02 hs 03 min
• ano de lançamento:1972
• estúdio:Les Productions Artistes Associés / Produzioni Europee Associati
• distribuidora:United Artists
• direção: Bernardo Bertolucci
• roteiro:Bernardo Bertolucci e Franco Arcalli, baseado em estória de Bernardo Bertolucci
produção:Alberto Grimaldi
• música:Gato Barbieri
• fotografia:Vittorio Storaro
• figurino:Gitt Magrini
• edição:Franco Arcalli e Roberto Perpignani
elenco:
• Marlon Brando (Paul)
• Maria Schneider (Jeanne)
• Maria Michi (Mãe de Rosa)
• Giovanna Galletti (Prostituta)
• Gitt Magrini (Mãe de Jeanne)
• Catherine Allégret (Catherine)
• Luce Marquand (Olympia)
• Marie-Hélène Breillat (Monique)
• Catherine Breillat (Mouchette)
• Jean-Pierre Léaud (Tom)
• Massimo Girotti (Marcel)
• Veronica Lazar (Rosa)
• Rachel Kesterber (Christine)
Nota: 10,0 (parâmetro/categoria: drama intimista)

Talvez a principal pergunta que se deva dirigir a essa linda obra poética de Bertolucci seja: aquele apartamento vazio, sem móveis, sem história, sem passado ou futuro, seria o refúgio onde os protagonistas vão se esconder da vida – um mero escape – ou seria a própria vida deles – a vida sincera e transbordante que eles nunca veriam do lado de fora? Evidentemente não se trata de uma pergunta a ser respondida; quem sabe não seja mesmo a pergunta que norteie uma análise mais profissional – como é digno de Bertolucci, a psicanálise permeia todo o filme, mas está muito além de mim encaixar uma obra-prima em uma teoria – que por hora não compreendo. Todavia, essa pergunta sussurrou-me suas angústias de modo suficientemente perturbador para que eu resolva explorá-la – sem respondê-la – a fim de escrever essa que talvez seja a mais pessoal dentre as críticas aqui trabalhadas – e não sei ao menos se posso chamá-la crítica, se isso melhor denominar-se-ia uma exposição, um externamento de sentimentos e sensações, ou se, afinal, não lhe cabe nome algum, do mesmo modo que nome algum cabia àqueles sutis e carregados personagens de Marlon Brando e Maria Schneider.
Dentro daquele apartamento tudo é relevante; lá não há excessos, por mais exagerado que seja o ambiente. Tudo o que seria excessivo foi descartado, estejamos falando seja de mobília, seja de nomes – o que nos leva a pensar que talvez o único modo de conhecer uma pessoa seja não a conhecendo; o mistério cria um contexto de intimidade desnuda onde não há nada a se esconder, por mais que todo o resto esteja escondido. Provavelmente o que estou tentando dizer é que, sem se esconderem atrás de um nome, de uma reputação, de um voto de amor ou de amizade; sem se esconderem mesmo atrás de um passado, é possível aos personagens desnudarem sem constrangimento o que realmente são – e esconderem atrás de si seu nome, seu amor, seu passado. Por mais que haja perguntas a serem feitas, não há respostas a serem dadas.
Parece que estamos em um lugar onde as instituições não chegam, onde não há coerção; e o sexo, como expressão máxima da vontade, como expressão mesma do Indivíduo, explode com total naturalidade desde a primeira cena em que os personagens se encontram no apartamento.
Por outro lado, o apartamento não é um lugar feliz. Parece que os personagens retornam sempre pra lá em busca de algo que não encontram – e de fato, eles acabam se prendendo a este lugar de modo até obsessivo. O apartamento é só um espaço, e como um espaço, parece que lá falta alguma coisa. Alguma coisa além das mobílias. Assim como nos personagens falta algo além de seu nome e seu passado.
Lá fora, eles ganham nome. Jeanne tem um noivo (Jean-Pierre Léaud), um noivo que quer transformar o amor deles em cinema. O que talvez seja a metáfora mais completa que alguém já tenha encontrado para expressar a artificialidade dos relacionamentos – pelo menos dos relacionamentos convencionais, aqueles que se passam “do lado de fora”. Ouvimos sempre falar na brutal diferença que distancia um beijo cinematográfico de um beijo real. Então: todos os beijos que ele dá em Jeanne são cinematográficos. Seu reencontro, suas declarações de amor, até seu pedido de casamento: tudo é cinema, é arte, é atuação. É tudo como se fosse uma reprodução, uma imagem, uma representação. A questão não é apenas não ser autêntico ou não ser sincero, é muito mais: é que tudo o que eles sentem só pode ser sentido através da lente de uma câmera.
Se o cinema representa a vida, o amor deles representa o amor deles. Em última análise, tudo o que eles vivem é representado. E mesmo se ousarmos encarar o cinema como algo entre a vida e a arte – como nos disse Godard – sabemos: a vida deles é como algo entre uma vida e nada. Nesse meio termo, deslizamos para o vazio – o vazio que permeia o amplo espaço do apartamento sem mobília.
Marlon Brando, por sua vez, é Paul. Paul acabou de vivenciar o suicídio de sua esposa. Americano, ele errou por muitos anos até terminar em Paris – o que o torna um personagem desnorteado, sem horizonte (quadro que se completa quando ele se declara ateu; e proíbe sua sogra de trazer um padre para o enterro de sua esposa). É como se ele entendesse o seu suicídio, mesmo que ela não tenha deixado cartas ou quaisquer explicações. Não apenas o suicídio da esposa; é como se ele entendesse o suicídio – algo que não faz sentido na cabeça da velha religiosa.
Quando viva, sua esposa tinha um amante – e ele o sabia, e era como se isso também pra ele fizesse sentido, ao mesmo tempo em que não fazia. Porque de certo modo o vazio é coerente. E não saberemos o que ela buscava ao vestir o amante com um macacão exatamente igual ao de Paul, ou ao tentar arrancar o papel de parede do quarto do amante com as próprias mãos, a fim de deixar o lugar semelhante ao quarto onde dormia com o marido. Assim como não saberemos o que Paul e Jeanne buscavam naquele apartamento. É como se, ao buscar algo, não buscassem nada.
Qual das duas vidas que cada um vive é a verdadeira? Sem que tal pergunta fosse respondida, a partir de um momento essas vidas cessam de ser paralelas e começam a interferir uma na outra. Jeanne está em uma cena do filme de seu noivo (que ao mesmo tempo é a vida de ambos) em que está experimentando o vestido de noiva. Com uma terrível ironia ela compara o casamento ao casamento dos pôsters, e define o casal como trabalhadores vestidos de macacão que repetidamente consertam o casamento como se conserta o motor de um carro. Então define o amor: “os trabalhadores vão a um lugar secreto. Eles tiram os macacões e viram homens e mulheres de novo, e fazem amor”. De repente ela abandona as filmagens, sem avisar, foge para o apartamento e declara sua paixão a Paul em um dos momentos mais marcantes do filme.
Mais tarde, quando ela retorna ao apartamento e não o encontra mais, desespera-se, e, de um modo muito simbólico (que para a psicanálise deve render interpretações fantásticas), acaba convidando seu noivo a irem morar lá.
Mas Paul na verdade não a tinha abandonado: ele tinha resolvido que começariam tudo de novo, e o mais importante; sem o apartamento: começariam uma vida do lado de fora. Mas, ao contrário das expectativas, em lugar do entusiasmo e alegria sobreveio a Jeanne uma agonia inexplicável; o espaço vazio do apartamento foi substituído pelo vazio da vida; e Jeanne não gostou de descobrir quem Paul era – por mais que durante quase todo o filme ela quisera e tentara conhecê-lo. E eis que, o que talvez fosse somente o primeiro tango, acabou sendo o último. Ao se conhecerem, eles se desconheceram, e o que seria o início de um amor foi na verdade seu fim.
Esta que sem dúvida é uma das maiores obras já feitas sobre o vazio existencial apresenta ao homem moderno, através de uma poesia linda e amargurada, as suas duas opções únicas: o imenso vazio de uma vida sem sentido ou o medíocre vazio de um apartamento sem mobília. E se na instabilidade inerente a este encontramos a estabilidade inerente àquele, e vice-versa, nossa escolha não é mais que uma questão de perspectiva: não se trata de uma esperança. Qual das opções é a vida real e qual é a sua catarse: eu não saberia dizer sem ser simplista. E é exatamente isso que torna a última cena tão enigmática: Jeanne ensaia o que falará para o noivo sobre o homem morto em sua varanda (a varanda de um apartamento que finalmente tem seus móveis): “Eu não sei quem ele é”, “não o conheço”; e nós não sabemos – e muito menos ela o sabe – se tais frases, afinal, são falsas ou reais.

- Francis Bacon
Essa “crítica” (por falta de melhor designação) não estaria de jeito nenhum completa, nem tão pessoal, se eu não citasse aqui um nome fundamental: Francis Bacon. Não confundir com o filósofo! Trata-se simplesmente do meu pintor favorito, o que mais me fascina, e ao mesmo tempo mais me agonia. E por que estou citando o seu nome? Porque eu surpreendi-me quando vi, logo no início do filme, na introdução, durante a apresentação de algumas referências técnicas, dois quadros do Bacon sendo exibidos na tela. Certo de que essa iniciativa do Bertolucci não seria de jeito nenhum aleatória, pesquisei, e descobri algo que eu sou leigo demais para que tivesse percebido sozinho: a fotografia do filme, de Vittorio Storaro, é toda inspirada em quadros do Bacon.
Uma sacada genial que, ao menos na minha cabeça, é absolutamente coerente: sempre vi Bacon como o pintor do vazio, da desilusão, do desespero. Da irracionalidade e da falta de sentido. O próprio já disse: “O homem compreende que é um acidente, um ser absolutamente fútil, que deve jogar até o final sem motivo”.
Se você quiser saber um pouquinho mais sobre Francis Bacon e ver alguns quadros dele, entre no álbum dedicado a ele em meu orkut:
http://www.orkut.com.br/Main#Album?uid=4899410086037152614&aid=1257430478

- Complemento
Como complemento à minha “crítica” – que por ser demasiadamente pessoal deixou a desejar referências a quesitos técnicos e curiosidades – deixo aqui recomendado um link sobre o filme que achei realmente interessante e elucidativo:
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:ZHA9dtq4IDsJ:www.blogpaedia.com.br/2008/12/10-mitos-que-ainda-pairam-sobre-o-filme.html+ultimo+tango+em+paris+criticas&cd=22&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br



- Prêmios
Círculo dos Críticos de Cinema de Nova York, EUA Prêmio de Melhor Ator
Academia Britânica de Cinema e Televisão, Inglaterra Prêmio de Melhor Ator
Indicado ao Oscar de Melhor Ator (Marlon Brando) e Diretor (Bernardo Bertolucci)

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

1900


Título original: Novecento
País: França, Itália, Alemanha Ocidental
Idioma: italiano
Duração: 320 min.
Technicolor
Direção: Bernardo Bertolucci
Produção: Alberto Grimaldi
Roteiro: Franco Arcalli, Bernardo Bertolucci, Giuseppe Bertolucci
Fotografia: Vittorio Storaro
Música: Ennio Morricone
Elenco: Robert De Niro, Gérard Depardieu, Dominique Sanda, Francesca Bertini, Laura Betti, Werner Bruhns, Stefania Casini, Sterling Hayden, Anna Henkel, Ellen Schwiers, Alida Valli, Romolo Valli, Bianca Magliacca, Giacomo Rizzo, Pippo Campanini, Donald Sutherland
Nota: 9,2 (parâmetro/categoria: épico/?)

- Algumas considerações iniciais
Antes de começar a discorrer sobre esse filme, queria compartilhar com vocês um susto que levei. Se, como eu, acham que 1900 é um filme grande – mais do que grande, imenso – mais do que imenso, absurda e insuportavelmente interminável, vão entender o que eu estou falando. Li em um site aparentemente confiável (do jornal Estadão: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,o-epico-1900-de-bernardo-bertolucci-sai-em-dvd,412061,0.htm) que o filme foi concebido por Bertolucci com oito (eu disse oito) horas de duração, mas foi mutilado pelos produtores. Além disso, teria sido picotado mais uma vez pela censura brasileira, já que estávamos em ditadura militar (a obra é de 1976).
Bom, passado esse susto inicial, quero primeiro apontar umas características gerais que percorrem os 320 minutos de filme e que contribuem para torná-lo uma obra-prima, para depois apontar um defeito grave que ele contém, e enfim encerrar minha (tentativa de) crítica com observações mais pontuais. Suponho que quem enfrentou um filme um pouco mais extenso que os demais não terá maiores problemas em uma crítica um pouco mais extensa que as demais!
1900 logo de início apresenta todas as características necessárias para ser o melhor filme do mundo: é dirigido por Bernardo Bertolucci (um Bertolucci amadurecido, que já realizara obras-primas como Antes da Revolução, O Conformista e O Último Tango em Paris), é protagonizado por Robert De Niro e Gérard Depardieu, a música é de Ennio Morricone (a divindade onipresente das trilhas sonoras); temos ainda a fotografia maravilhosa e incriticável de Vittorio Storato. E, principalmente, a promessa de uma temática monumental: a obra abrangeria meio século de História, e não nos referimos a qualquer século; trata-se da primeira metade do complexo e conturbado século XX, o que englobaria duas guerras mundiais e a ascensão tanto do fascismo quanto do movimento comunista.
Infelizmente não é o melhor filme do mundo, mas é uma obra-prima sem comparações no cinema. A promessa que ele nos apresenta de antemão foi cumprida: não de forma didática, sistemática, mas abrindo mão de um recurso que, quando bem utilizado, cria filmes maravilhosos: a abordagem de um macrocosmo histórico, social e político através do viés de um microcosmo, que contém, em si, todas as características desse macrocosmo. É um formato que consegue um envolvimento muito maior, abordando a História de um jeito muito menos distante: é como se ela tivesse presente em cada ação dos personagens, em cada cena que se segue, e nos olhos de cada um que assiste. O condensamento da História num microcosmo tem o dom único de mostrá-la como um agente realmente atuante, presente e onipresente, não como um conceito, uma idéia: é como se trocássemos o método pela experiência. É o que faz Michael Haneke em seu recente A Fita Branca; é o que fizera muito tempo atrás Bertolucci, falando de meio século da história de um país através da história de dois amigos, um patrão e um camponês, em algum lugar do ainda feudal sul da Itália.
Sob essa linda e palpável perspectiva Bertolucci, partindo da morte de Giuseppe Verdi, o que talvez para ele simbolize o início do século – ou pelo menos o início do século para a Itália –, consegue acompanhar o início do movimento comunista, a conscientização dos camponeses, os primeiros movimentos de greve, os grupos depois efetivamente organizados, as prisões; consegue acompanhar as raízes do fascismo, desde sua situação de submissão à classe dominante até a tomada do poder – e sua queda. Consegue acompanhar a História de seu país, e consegue a autoria de uma obra-prima.
E tudo isso a partir do formato único e maravilhoso do cinema europeu, que, sem as hipocrisias quer permeiam, por exemplo, o puritanismo do cinema norte-americano (aqui, claro, falando em termos absurdamente genéricos), impedem que uma representação da vida (o que além disso seria o cinema?) discorra com naturalidade – uma bobagem que potencializa em muito a distância entre a representação e o representado. O cinema europeu, em sua generalidade, tende a representar a vida de um modo muito mais natural e sincero, e isso é claramente perceptível em Bertolucci, e ainda mais em 1900. Podemos captar tudo isso em cenas como aquela que acompanha o abate de um porco para alimentação dos camponeses, mas o exemplo mais bem-acabado será sempre o tratamento dispensado à sexualidade – seja desde a explicitação sem constrangimentos de cenas de nudez e de sexo, seja até o próprio evidenciamento que se dá à sexualidade dos personagens – o que entra em forte contraste com a Hollywood à qual muitos se acostumaram, uma grande produtora de personagens assexuados.

- Maniqueísmo
De fato trata-se de um ótimo filme, porém apesar de tudo apresenta um problema sério, e esse problema, claro, é o maniqueísmo. Um enfático maniqueísmo referente a uma dicotomia muito rígida que antagoniza não somente patrões e empregados (embora haja essa dicotomia também), mas principalmente (em termos da força que ela assume), comunistas e fascistas. Oras, o capataz interpretado por Donald Sutherland é o demônio. E amante dele, Regina (interpretada por Laura Betti), que é prima de Alfredo, fica atrás apenas por uma distância de representatividade (em termos de “mau”, ele é o protagonista e ela a coadjuvante). Basta que eles surjam em cena para que se crie instantaneamente uma atmosfera absoluta de mal-estar, com direito a uma trilha sonora funesta. Contudo, claro, seria até compreensível se o maniqueísmo que endemoniza os fascistas fosse referente apenas aos aspectos estéticos. Mas não é. De um modo muito simbólico, acompanhamos o capataz Attila, representante máximo do fascismo no filme, assassinando psicoticamente (trazendo-nos inclusive uma cena que beira o trash) os que talvez sejam três dos maiores símbolos de pureza, ingenuidade e bondade que temos: um gatinho fofo, uma criança (que ele estupra antes de matar) e uma senhora viúva. É claro que essas três figuras não são casuais. Também é claro que não possuem qualquer embargo político: é um impacto muito diferente do que proporciona ver fascistas matando comunistas ou quaisquer opositores ou dissidentes do governo de Mussolini. É um impacto que afeta muito mais aquela emoção que é condicionada por nossa moral, é, em outras palavras, um impacto apelativo, e com poucas (nenhumas) relações com o contexto sócio-político. Concebido exclusivamente para que odiemos o personagem-símbolo do fascismo. O que (claro!) consegue com muito êxito: é impossível não se regojizar quando Attila é perfurado pelas enxadas dos camponeses furiosos (cena que se projeta duas vezes durante o filme).
Existe também a dialética entre patrões e camponeses, mas essa já se apresenta mais bem-enquadrada ao contexto histórico que o filme representa e, mesmo que não encontremos também aqui imparcialidade, obviamente não se trata isso de um defeito, pois se é difícil exigir imparcialidade de uma aula de história é estúpido que se o exija de uma obra de arte. E mesmo que o eixo principal do filme nos apresente os camponeses como heróis imaculados, alguns pequenos cuidados são tomados: o momento em que é perguntado a Olmo (Gérard Depardieu) o significado da frase “o comunismo é a juventude do mundo” seria perfeito para que o protagonista do movimento camponês discorresse (sob muita pompa estética) um eloquente discurso marxista; mas trata-se de um camponês, um personagem sem instrução, cujo impulso revolucionário vem da experiência e da vontade, não de um saber intelectual, e o que acontece é que ele fica sem resposta. Além disso, não temos aqui o herói perfeito e ideal: por exemplo, por várias vezes Alfredo lhe indaga “você roubou a pistola de meu pai. Por que não a usa?”, e ele não somente não a usa, mas é o primeiro camponês que, ao final do filme, cede à ordem de desarmamento. Alfredo, por sua vez, interpretado por Robert De Niro, leva a vida vazia de sua herança aristocrática, mas mantém desde sua infância uma personalidade ambígua (eu ia dizer multifacetada, mas acho que no ambiente bipolarizado que se criou nesse contexto histórico isso seria exagero). Quando criança, Alfredo em um momento se diz dono não apenas dos bichos-de-seda de Olmo, mas do próprio Olmo; em outro momento se diz socialista (socialista dos bolsos rasgados, como eles falavam). Quando adulto, já impregnado pela lógica que taxava os comunistas de subversivos e os culpava por qualquer tragédia que acontecesse, presencia por muitos minutos os Camisas-Negras espancando Olmo (sob a acusação de que teria assassinado a criança que na verdade foi Attila que matou), e, mesmo sabendo que Olmo não fora o culpado, pois passara a tarde com Ada (Dominique Sanda), não os ordena que parem. Porém, após anos e mais anos convivendo com a incapacidade de demitir Atilla de seu cargo de capataz, imediatamente o faz assim que o flagra invadindo a casa de Olmo (que estava fugido). E temos também o avô de Alfredo, também Alfredo, interpretado por Burt Lancaster (personagem que lembra muito o aristocrata decadente que Lancaster interpreta em O Leopardo, de Luchino Viconti), que é permeado de incertezas e frustrações, mas que é sobretudo carismático. Que acaba se suicidando, meio que levando consigo os resquícios de dignidade de sua linhagem.
Claro que temos o pai de Alfredo como encarnação da aristocracia perversa. É o tipo de gente que manipula o testamento do pai para adquirir pra si a herança inteira, que substitui os empregados por máquinas e os quer obrigar a trabalhar mais por menos em prol da recuperação das plantações perdidas pela tempestade. Mas tudo isso soa muito mais realista e legítimo quando comparado ao fascista que tem prazer em exterminar gatinhos, crianças e viúvas.

Não obstante tudo o que foi apontado neste tópico, é importante considerar que a Itália viveu o fascismo na pele; poderíamos de certa forma apontar aqui uma espécie de “trauma” coletivo, do qual seria muito exigir que Bertolucci, italiano fruto de suas condições materiais, escapasse. Em outras palavras, o maniqueísmo é um erro grave, mas podemos decerto dar algum desconto.

- Quase dois filmes
Esse viés comunista que o filme aparentemente assume manifesta-se de modo particularmente intenso e claro na primeira parte – essa sim, um verdadeiro “épico”, segundo as categorias mais elementares do termo: um enredo simples, personagens “tipos”, a heróica luta entre o bem e mau, a estética do espetáculo (o que rende cenas lindas e emocionantes como a em que os camponeses deitam-se na frente dos cavalos das autoridades para impedi-los de passarem).
De fato, se o filme se limitasse à primeira parte (ou se encontrássemos na segunda parte o mesmo formato da primeira), eu o descreveria em poucas linhas como o melhor épico que já assisti, o que – eu acrescentaria – não significa algo tão maravilhoso assim, já que a categoria épico encerra em si limitações muito profundas. É claro que eu me delicio muito mais assistindo o embate entre o movimento camponês do Sul da Itália contra a aristocracia feudal na primeira metade do século XX do que ser obrigado a me posicionar do lado dos sulistas escravocratas na Guerra Civil norte-americana e testemunhar o romance novelesco de protagonistas rasos (estou me referindo, claro, a “...E o vento levou”, um épico por excelência). Mas mesmo assim, o simples fato de ser um épico já impõe problemas muito sérios, como a redução de personagens a caricaturas.
Mas 1900 não se limita a sua primeira parte, e não se limita à categoria de épico. A segunda parte se encarrega de aprofundar psicologicamente os personagens, tornar bem mais complexa a temática trabalhada e, principalmente, tornar o filme menos linear e mais confuso. E tudo isso sem abandonar de jeito nenhum a abordagem política e histórica – ao contrário, a construção dos personagens evidencia eficientemente o quão eles são determinados pelas condições materiais de seu tempo (isso fica bem nítido, por exemplo, quando as dificuldades no casamento de Alfredo e Ada e a atração desta por Olmo demonstram ter forte fundamento na bipolaridade político-ideológica do momento). É como se a psicologia e a História se fundissem para construir os personagens e as relações entre eles – o que provavelmente corresponderá à mais realista reprodução da realidade.
Antes de mais nada, a segunda parte é muito mais Bertolucci, e quando digo isso me refiro não apenas a tudo isso mas também à estética. Deixando-nos a impressão de que toda a primeira parte, com suas três horas de duração e todos os seus momentos maravilhosos – o “melhor épico que já assisti” – é simplesmente uma preparação para a segunda parte, que não é um épico, mas algo sem definição.
É certo que boa parte das aberrações mencionadas encontram-se na segunda parte (é nela que morrem a criança e a viúva). É certo também que a primeira parte conta com trechos psicologicamente trabalhados – o personagem de Burt Lancaster resolve-se definitivamente pelo suicídio ao tentar seduzir (ou estuprar) uma jovem camponesa e perceber-se sexualmente impotente (o que sob uma leitura psicanalítica estaria intimamente relacionado à decadência que o cerca e que o atormenta).
Entanto é na segunda parte que essa abordagem mais aprofundada surge não em pontos específicos, mas no próprio eixo de condução do filme. O que torna-se mais explícito seja nos momentos com a prostituta epilética, seja na relação entre Ada (então já esposa de Alfredo) com Olmo, que reprimem uma tendência inconsciente de recíproca aproximação e desejo, seja na expressão dos ciúmes de Alfredo, ou seja em outros momentos.
Mas como aliar psicologia e política, e deixar as coisas claras? O pressuposto é que filme político só funciona com personagens “tipos”, superficiais, caricatos. E de fato, o único diretor que eu conheço, a princípio, que aborda esses dois aspectos da vida humana simultaneamente em seus filmes é o Bertolucci – e certamente é isso que o torna tão difícil para mim. Sim, ouso reconhecer que estou aqui escrevendo sobre um diretor com o qual enfrento dificuldade, e de jeito algum se trata essa de uma crítica acabada, mas antes de um exercício árduo de compreensão. Bertolucci é difícil – e nem o mais entendido vai poder dizer que ele não o é! – porque política pressupõe uma direção, enquanto profundidade psicológica pressupõe uma névoa difusa. Isso se torna muito claro quando se pensa em termos de roteiro: os filmes intimistas encaminham-se para as direções mais variadas possíveis, enquanto filmes políticos tendem a ser mais previsíveis – filmes históricos, por motivos óbvios, tendem a uma previsibilidade ainda maior.
Se 1900 seguisse a linha da primeira parte, seria mais do que óbvio, pelo menos na minha cabeça, que Alfredo, o personagem de Robert De Niro, terminasse transmutado em um aristocrata perverso, e que ele e Olmo se enfrentassem (não necessariamente fisicamente) em uma dialética absurdamente classista e determinista. Ou, na melhor das hipóteses, o Alfredo mudasse de lado, abdicasse de suas pompas e se inserisse na luta ao lado dos camponeses. Só era possível a esse personagem um dos extremos, eram apenas essas as posições e mais nenhuma, mas não foi nenhuma delas que aconteceu; os dois protagonistas permaneceram simultaneamente amigos e inimigos durante absolutamente todo o decorrer do filme.

- Bertolucci e sua política: a cena final
E o que aconteceu não foi nada menos do que o seguinte: sem sequer passar-lhe pela cabeça essa idéia maluca de legitimar a luta de classes (e, o que seria ainda mais raso, fixar-se a um lado mesmo depois que a História tornasse esse lado um absurdo existencial), o que Bertolucci fez foi SATIRIZAR a luta de classes, do jeito mais debochado, cômico e, principalmente, cruel que poderia fazê-lo. E é por isso que direi aqui que a genialidade do filme reside na cena final. Porque é nela que ele quebra toda a esperança de libertação que ele segura entre os dedos por horas e horas de filme para, de uma só vez, numa tacada fria e profundamente sóbria, mostrar-se desiludido e vazio de expectativas.
1900 não é um filme pontual, pois trata de meio século de história. Alguns críticos disseram que isso faz com que ele perca o foco, mas não é assim que vejo. Para que se entenda o que estou a dizer, resumirei com o seguinte: durante todo o período histórico em que o movimento comunista mostrou-se a verdadeira esperança para a libertação das classes baixas do julgo da exploração, o filme se apresentou assumidamente comunista e esperançoso. No momento em que esse movimento se apresentou nitidamente frustrado – oras, eles tinham ganhado, eles derrubaram os fascistas, eles venceram, estavam todos festejando animados e felizes, mas eis que o Comitê Nacional de Libertação, sim, aquele que os representava no novo governo (ao mesmo tempo a eles, aos liberais, e a gente de todo o tipo) ordenou-lhes que entregassem todas as armas!, e de prontidão o próprio Olmo concordou em entregá-las, lançando mão de um discurso que legitimasse isso – oras, nesse momento também o próprio filme se apresenta frustrado. E é uma frustração amarga, pois ela não traz nem em seu mais remoto ser um resquício de esperança. E o que nos resta é rir – rir muito – dos dois velhos amigos estupidamente brigando para sempre.
Se a luta de classes é eterna, talvez a pergunta que me faço a cada filme do Bertolucci – qual é, de uma vez por todas, sua posição política? – seja, de fato, irrelevante. Melhor talvez o explicaria Kafka: “Há esperanças; só não para nós”.


- 1900 ganhou o Prêmio Bodil de Melhor Filme Europeu (1976)

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Titãs - a vida até parece uma festa


título original:Titãs - A Vida Até Parece uma Festa
gênero:Documentário
duração:01 hs 40 min
ano de lançamento:2009
estúdio:Academia de Filmes / Caso 5
distribuidora:Moviemobz
direção: Branco Mello , Oscar Rodrigues Alves
roteiro:Branco Mello e Oscar Rodrigues Alves
produção:Angela Figueiredo e Paulo Roberto Schmidt
edição:Branco Mello e Oscar Rodrigues Alves

elenco:
Arnaldo Antunes
Branco Mello
Tony Bellotto
Charles Gavin
Marcelo Fromer
Sérgio Britto
Paulo Miklos
Nando Reis

Comentário breve:

Nada mais que um punhado de gravações caseiras realizadas por Branco Mello desde os primórdios da banda, editadas de modo não cronológico e sem quaisquer pretensões informativas, elucidativas ou mesmo de homenagear sua história, o valor desse filme sobre os Titãs é de caráter puramente doméstico – e quando digo isso, o equivalho àqueles filmes que os casais fazem de seus filhinhos pequenos para tempos depois assistirem cheios de carinho e doce nostalgia.
Exatamente devido a isso, trata-se de uma relíquia única para os fãs. Para os fãs de verdade. O quê despretensioso de Titãs – a vida até parece uma festa (por sinal absolutamente coeso com o título) concede ao documentário um tom descontraído que permeia o próprio imaginário popular criado em torno da banda – é esse o clima de seus shows (e eu sei porque já tive a felicidade de assistir a um show deles), e é o clima mesmo da sua história. Qualquer tom didático seria, aqui, não apenas excessivo e desnecessário, mas intrinsecamente incabível.
Esse belíssimo retrato do que foi e ainda é uma das principais e mais geniais – na minha sincera opinião – banda brasileira de rock dos anos 80 é exatamente aquilo que deveria ser. E não agradará a todos – mas aos verdadeiros fãs não restará mais do que assistir diversas vezes, com todo o carinho e a doce nostalgia de verdadeiras mães.

Titãs - a vida até parece uma festa foi indicado a melhor trilha sonora e melhor edição-documentário no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro.

domingo, 4 de julho de 2010

Cinema Paradiso

Por motivos acadêmicos abandonei meu blog às traças por um bom tempo, embora com pouco peso na consciência, já que minha última postagem fora não menos que The Wall. Agora, como um modo de me redimir, retorno com esse que é um grande clássico, um filme já arraigado ao imaginário popular. E aguardem, porque, assim que eu encontrar a versão original do filme e assisti-la - aposto que você não sabia que a versão que você conhece é cortada! - voltarei nesse post para as devidas atualizações.

• título original:Nuovo Cinema Paradiso
• gênero:Drama
• duração:02 hs 03 min
• ano de lançamento:1988
• estúdio:TF1 Film Productions / Les Films Ariane / Cristaldifilm / RAI
• distribuidora:Miramax Films
• direção: Giuseppe Tornatore
• roteiro:Giuseppe Tornatore
• produção:Mino Barbera, Franco Cristaldi e Giovana Romagnoli
• música:Andrea Morricone e Ennio Morricone
• fotografia:Blasco Giurato
• figurino:Beatrice Bordone
• edição:Mario Morra
Elenco:
• Antonella Attili (Maria - jovem)
• Enzo Cannavale (Spaccafico)
• Isa Danieli (Anna)
• Leo Gullotta (Usher)
• Marco Leonardi (Salvatore - adolescente)
• Pupella Maggio (Maria - idosa)
• Agnese Nano (Elena - adolescente)
• Leopoldo Trieste (Padre Adelfio)
• Salvatore Cascio (Salvatore - criança)
• Roberta Lina (Lia)
• Nino Terzo (Pai de Peppino)
• Jacques Perrin (Salvatores - adulto)
• Brigitte Fossey (Elena - adulta)
• Philippe Noiret (Alfredo)
• Tano Cimarosa
• Nicola Di Pinto
Nota: impessoal: 10
pessoal: 8,0
(categoria/parâmetro: drama leve)

Cinema Paradiso é a última palavra em lirismo, nostalgia e beleza. A homenagem mais delicada que poder-se-ia realizar ao mundo do cinema, e ao mesmo tempo aos sentimentos humanos mais puros. Não é um filme intelectual, complexo ou profundo; não é um filme que gerará discussões acadêmicas ou devaneios sócio-filosóficos. É simplesmente um filme que faz os críticos mais severos e os especialistas mais engravatados esquecerem que sabem alguma coisa, esquecerem tudo o que sabem, para simplesmente chorarem.
Foi o que aconteceu no Festival de Cannes, ocasião em que as palmas se prolongaram por muito tempo, e as lágrimas escorreram nos rostos outrora esnobes – foi esse, ao menos, o depoimento que Rubens Ewald Filho trouxe de lá. Cinema Paradiso conquistou não apenas o Grande Prêmio do Júri nesse festival, mas o Oscar de melhor filme estrangeiro e muitos outros prêmios importantes. O segundo filme de Giuseppe Tornatore teve uma repercussão fantástica, embora num primeiro momento se tenha prometido um fracasso: as primeiras exibições na Itália foram repudiadas pelo público. E, embora muitos atribuam a alteração abrupta nos ventos ao corte de meia hora que os realizadores do filme fizeram – corte esse que tirou da história a personagem adulta de Elena, interpretada por Brigitte Fossey – o produtor Franco Cristaldi garantiu que foi mínima a relevância dessa iniciativa.
Um dos méritos desse filme é o mesmo creditado a autores como Guimarães Rosa: conseguir transmitir numa obra bem regional um quê internacional: trata-se de um filme que causará comoção em qualquer lugar do mundo. E não apenas comoção, mas identificação, muito embora a história seja bem delimitada tanto em questão de espaço quando de tempo: é a Sicília do pós-guerra, na qual vemos prédios ainda destruídos, referências a Stálin (é o bigodudo do qual todos falam mal) – e vemos até um comunista cuja família está indo embora por motivos políticos; vemos o povo simples da Sicília, essa linda e tradicional ilha bem ao sul da Itália, pouco afetada pelos privilégios da unificação e até hoje uma das regiões mais pobres do país; vemos a cultura italiana, seu modo de ser, acontecimentos bem típicos como quando jogam pratos pelas janelas das casas no ano novo, quebrando tudo. Temos aquele clima de cidade pequena, com todos os seus personagens típicos – temos até o louco que não causa medo, mas riso, e quem mora ou já morou em cidade pequena sabe que isso é de praxe. Tudo bem ambientado de um modo bem ameno, mesmo que muitos tenham sido os danos da Segunda Guerra, mesmo que muitos não tenham voltados, entre eles o pai de Totó, é um pós-guerra esperançoso, cheio de promessas, de planos, de vida. As pessoas vivem.
E um dos principais lugares onde as pessoas de fato vivem é o Cinema Paradiso; e não é apenas onde elas vivem, mas o que lhes dá a vida, e mesmo que isso esteja especialmente simbolizado no personagem de Totó, é também perceptível em cada personagem da cidade: o casal que trocou os primeiros olhares nesse cinema para depois freqüentá-lo com seu filho, o velho chorão que sabia todas as falas de cor e as repetia antes mesmo dos personagens dos filmes, os moleques que se masturbavam com a suntuosa beleza de Brigitte Bardot. É dentro deste cinema onde os personagens se constroem, de modo que ele nunca pode ser visto como apenas um lugar.
Assim como Alfredo não é apenas um homem. O próprio diretor, Giuseppe Tornatore, salientou que quis representar nele uma personificação do cinema. Alfredo reclama a todo tempo de seu emprego, mas jamais o deixará, pois cada vez que escuta o deleite daqueles que assistem a um filme que ele está projetando, é como se fosse ele mesmo a lhes causar o deleite. E é essa sensação de auto-realização que ele acaba incondicionalmente passando para Totó, não apenas incondicionalmente mas contra seu próprio desejo: porque ele não via nesse trabalho ingrato um futuro para Totó.
E é pensando no futuro de Totó que Alfredo o manda embora para Roma. Mas nós percebemos, mais nitidamente do que nunca a nossa vida o mostraria (quem sabe talvez quando chegássemos ao final dela e olhássemos para trás com a mesma delicada nostalgia com a qual Totó o fez) que ter um futuro nada tem a ver com grandeza. Porque tudo o que Totó viveu fora de sua aconchegante cidadezinha na Sicília – e fora de seu querido Cinema Paradiso – foi exatamente tudo o que viveu de menos importante. Não obstante tenha conquistado fama ou prestígio, dinheiro ou mulheres.
De tudo o que construiu em sua vida, o que lhe restou ao final dela de mais significativo, de mais pleno, foram as cenas cortadas que o padre censurara. E é por isso que é impossível assistir a cena final sem chorar. E é por isso que é impossível lembrar dela sem que o os olhos umedeçam. Talvez o que mais importe na vida de um homem seja aquilo que conquistou – ou que o conquistou – quando criança.
A mensagem que um filme tão lindo nos lega é apenas aquilo que Alfredo disse a Totó antes dele partir: “Seja o que for que fizer, ame-o como amou a cabine do Cinema Paradiso quando era pequeno”. Se não amarmos tudo o que fazemos em nossa vida desse mesmo modo, não podemos chamá-la vida.


- Alguns adendos
A parte técnica do filme é bem simples, no sentido de ser tradicional, sem muitas inovações, mas dentro do que se propõe é impecável. Os atores são perfeitos, a criança que interpreta o menino Totó é um achado, consegue transmitir exatamente o ar maroto e sincero que lhe é cabido – curioso o fato do ator ter o mesmo nome e o mesmo apelido do personagem, o que o diretor jocosamente chamou de “destino”. Philippe Noiret, que faz Alfredo, consegue ser quase mais fofo que o próprio Totó. A direção é extraordinária para um segundo filme, e as tão lindas e características paisagens da Sicília – ilha onde o diretor nasceu -, junto com a trilha sonora do mestre onipresente do cinema, Ennio Morricone, contribuem de modo elementar para a sensação de delicadeza e lirismo que Tornatore almejou. Como já foi dito, toda a técnica é muito simples, quase rudimentar; a trilha sonora, por exemplo, tem sempre o mesmo mote, não há tomadas trabalhosas e as pitadas de comicidade são bem típicas; mas cada um desses elementos é coeso com a essência de um filme que não é feito essencialmente para intelectuais, mas para poetas.
Um outro adendo é sobre o romance de Totó e Elena (a jovem Agnese Nano). Embora muito bonito, não sei se, do modo que foi posto, esse romance era muito cabível ao momento ou ao menos necessário; ele deu um tom melodramático um pouco excessivo que não permeia o mote principal do filme: este tem uma sensibilidade mais simples, mais mundana, e principalmente mais simbólica. O tom romântico do filme, o lirismo, a nostalgia, a emoção, representando uma homenagem ao cinema, e mais do que ao cinema, à vida, está nas entrelinhas, não no que é explícito. Choramos enquanto Totó, já velho, assiste as cenas censuradas do cinema, não pelo modo como isso se mostra, mas por tudo o que isso significa, e, por mais profundo que seja tudo o que isso significa, não é preciso para representá-lo mais do que algumas cenas de beijo que foram cortadas. É tudo muito simples, contido; é a poesia dos modernistas, que toca as emoções mais vitais sem nunca usar mais que vocábulos corriqueiros. Mas de qualquer modo, com todos os seus excessos, é impossível não nos emocionarmos com a longa espera de Totó por uma janela que não se abre. Talvez exatamente o que o filme quer nos mostrar nesse ponto é que o amor não existe sem excessos.


- O cinema
Minha primeira impressão do filme causou-me a princípio certo repúdio pelo tipo de cinema que ele propôs-se a homenagear. As referências são todas a grandes astros da clássica Hollywood. Humphrey Bogart, Clark Gable, Greta Garbo. Vemos também Brigitte Bardot, o maior produto de exportação da França dos anos 60. Apenas uma menção isolada a Luchino Visconti, grande cineasta italiano. O cinema de massa, industrial, ovacionado com toda a cara de pau.
Mas rapidamente mudei o ângulo pelo qual estava observando. O objetivo de Cinema Paradiso não é ser crítico do ponto de vista social, não é apresentar análises ou ideologias; como eu disse, não é um filme para intelectuais – e aqui estava eu querendo ser intelectual. Aquela pequena sala de cinema, naquela pequena cidade de gente tão simples na ilha de Sicília, não condizia com obras do grande cinema artístico – se Hollywood é cinema de massa, aquela justamente era a massa. O que Cinema Paradiso se propõe não é homenagear o cinema elitizado que, por mais profundo que seja, devido a todas as debilidades do nossa realidade sócio-econômica não consegue sair da ambiente acadêmico; Cinema Paradiso homenageia simplesmente o que o cinema banal, o cinema não como arte, mas como apenas cinema, consegue despertar na pessoa simples, naquela pessoa que não tem cultura, mas que também não tem superfluidades, que vai ao cinema não para estudar, mas para rir, para namorar, para chorar e repetir as falas dos personagens, e mesmo para se masturbar. Não estou – não seria eu mesmo se fizesse isso – legitimando Hollywood, mas encarando-o com a ótica de Cinema Paradiso; a mesma ótica daqueles que não têm embargo para fazer críticas sociais. E não acho que Cinema Paradiso deixe em sua homenagem o cinema artístico de lado, mas apenas não o coloca como foco; porque o foco desse filme é exatamente aquilo que é simples e acessível, que consegue tocar a todos do mesmo modo. Que é simples mas desperta emoções profundas; antes de tudo desperta emoções; e desperta a própria vida.




Prêmios:

Oscar 1990 (EUA)
Venceu na categoria de Melhor Filme Estrangeiro.

Globo de Ouro 1990 (EUA)
Venceu na categoria de Melhor Filme Estrangeiro.

Festival de Cannes 1989 (França)
Recebeu o Grande Prêmio do Júri.
Indicado à Palma de Ouro.

Prêmio César 1990 (França)
Ganhou o prêmio de Melhor Poster.
Indicado na categoria de Melhor Filme Estrangeiro.

Academia Japonesa de Cinema 1991 (Japão)
Indicado na categoria de Melhor Filme Estrangeiro.

Prêmio David di Donatello 1989 (Itália)
Venceu na categoria de Melhor Música (Ennio Morricone).

BAFTA 1991 (Reino Unido)
Venceu nas categorias de Melhor Ator (Philippe Noiret), Melhor Ator Ator Coadjuvante (Salvatore Cascio), Melhor Filme em Língua Não Inglesa, Melhor Trilha Sonora Original e Melhor Roteiro Original.
Indicado nas categorias de Melhor Fotografia, Melhor Figurino, Melhor Diretor, Melhor Edição, Melhor Maquiagem e Melhor Direção de Arte.

domingo, 9 de maio de 2010

Pink Floyd - The Wall


Designed by Gerald Scarfe
With Bob Geldof as Pink
film Music Produced by Roger Waters, David Gilmour and James Guthrie
Executive Producer Steve O’Rourke
Produced by Alan Marshall
Animation Directed by Gerald Scarfe
Screenplay by Roger Waters
Directed by Alan Parker
(dados retirados diretamente do encarte do dvd)
elenco:
• Bob Geldof (Pink)
• Christine Hargreaves (Mãe de Pink)
• James Laurenson (Pai de Pink)
• Eleanor David (Esposa de Pink)
• Kevin McKeon (Jovem Pink)
• Bob Hoskins (Empresário)
• David Bingham (Pequeno Pink)
• Alex McAvoy (Professor)
• Marjorie Mason (Esposa do professor)
• Ellis Dale (Médico)
• Robert Bridges (Médico americano)
• Ray Mort
• James Hazeldine
• Jenny Wright
Nota: 10 (parâmetro/categoria: cinema)

Trata-se meramente de um dos filmes mais poéticos da história. Profundo, sensível, sarcástico, impiedoso, o filme, através de letras delicadas de músicas delicadas e imagens intensamente delicadas, desconstrói toda uma cadeia de valores através da construção de um muro. Construir e desconstruir: é a temática que transpassa toda a obra. E é o que acontece conosco ao nos depararmos com obras de arte verdadeiras: nos construímos e nos desconstruímos. E às vezes isso dói.

- A construção do muro
The Wall quer que doa, e não tem pudor nenhum ao fazer doer. A imagem da mãe de Pink é tão desconcertante porque é terrivelmente material, é uma imagem quase palpável. O filme não constrói uma personagem peculiar, uma mãe que tem determinados defeitos a serem apontados, defeitos que seriam realçados e enfatizados pra justificar o tijolo que ela representa no muro de Pink. Não. A mãe de Pink é um tijolo em seu muro apenas por ser mãe: em última instância, todas as mães são tijolos no muro de seus filhos; em última instância, todos começam a construir seu muro na maternidade.
Nossas mães nos passam seus medos. Não por maldade, ao contrário, por serem mães demais. Ou de menos. Por simplesmente terem parido, por terem em seus filhos uma parte de si mesmas.
Do mesmo modo, a guerra é simplesmente a guerra, não é uma guerra injusta, uma guerra de fins sujos, ou pode até ser, mas isso tudo só seria procedente do fato de em primeira instância tratar-se de uma guerra. Pink perdeu seu pai na guerra, e tudo o que resta é a foto no álbum. Roger Waters transmite-nos tão bem essa sensação porque ele próprio perdeu seu pai na guerra. Mas o fato é que nós próprios, como seres humanos, perdemos muito de nós próprios em todas as gerações passadas perecidas em guerras. Todos nós perdemos nossos pais. A guerra é a lenta degeneração de uma alma coletiva.
Tudo isso é apenas mais um tijolo no muro.
E a escola! Ah, a escola... sendo nada mais que uma continuidade da família, da estrutura de legitimidade e hierarquia da família, da transmissão vertical de conhecimento, nada menos coeso que se constituir em mais um e definitivo tijolo. Rendendo um dos trechos mais famosos do filme, que muitas pessoas conhecem apesar de desconhecerem a existência do filme (eles julgam ser o clipe da música “Another Brick in the Wall part.2”). As crianças compartimentadas como em campo de concentração, trabalhando em uníssono como em linhas de montagem (literalmente sobre esteiras), sendo moídas e tornando-se carne, a matéria bruta, insensível, científica, fria, apática, modelável. A criança ideal. A criança que não vai botar fogo em tudo igual Pink imaginou.
Apenas mais um tijolo nesse muro. Mãe, precisava ser tão alto?

A repressão sexual. Não a repressão a minorias sexuais – o filme não constrói situações peculiares a serem criticadas – mas a repressão sexual dentro do casamento – existiria maior repressão do que num ambiente em que sexo deixou de ser prazer, desejo e paixão para tornar-se um contrato formal? Talvez não dir-se-ia repressão, mas sim opressão. Os tijolos de Pink são muito genéricos, Pink é muito genérico, o filme é muito genérico: ele não trata de particularidades, mas do muro que o homem comum constrói sobre si, o muro que é construído com a ajuda de todas essas instituições nas quais estamos inevitavelmente mergulhados, o muro que quiçá todos nós temos, o muro sem o qual talvez nem conseguíssemos olhar para o horizonte: só olhamos para ele porque não o vemos. Se o víssemos, nos ofuscaríamos.
Todas essas instituições são encaradas não com uma olhar social, metodológico, através de uma ótica de critica objetiva, mas ao contrário, através de uma estética individual, profundamente subjetiva, e não apenas subjetiva, mas poética, absurdamente poética, agonizantemente poética. É uma poesia que brada, que grita, clama, que chora, que não é inoculada na gente, mas que, ao contrário, nos perpassa com a pressão de um tiro. O que são aquelas imagens que resumem absolutamente tudo o que se pode dizer sobre a guerra em alguns minutos? Uma pomba branca voa, voa pelo céu, de repente explode, de dentro dela sai um monstro negro. Aviões de guerra transformam-se em cruzes voando no céu. Seres deformados cujos rostos são máscaras de gás desnorteados, apavorados mas sem rumo a tomar. Uma bandeira da Inglaterra (simbolicamente porque trata-se de um filme inglês): o azul da bandeira desmorona, o que resta assume-se cruz, o vermelho da bandeira escorre como sangue. Essas imagens são tão perfeitamente simples, simples no sentido de claras: elas transmitem tudo sem precisarem dizer nada. Nada além do que declamam as belíssimas letras. Somente o título da música dessa cena já traduz tudo o que tem a ser dito, com três palavras: Adeus céu azul.
E as imagens sobre a relação entre os cônjuges? As que falam sobre a opressão sexual? Sim, aquele momento em que surgem na tela duas plantas, uma em formato fálico, simbolizando o homem, outra aberta como uma vagina, simbolizando a mulher. Se não são essas imagens a mais límpida, simples, e clara poesia não sei o que são. Tudo o que se pode dizer sobre casamento está ali. Ali estão as carícias, os afetos, está o ápice que é a cópula, até que as plantas criam dentes e começam a se destruir mutuamente, tudo o que era promessa vira tragédia, até que uma planta engole a outra, cria asas negras e sai voando. O que precisamos fazer para preencher espaços vazios? Daí parte-se para uma parábola sobre consumismo. Considerando que consumimos pessoas, é simplesmente brilhante.
Como eu posso completar o muro? Pink já tem o espectro da guerra, o espectro da própria mãe, sua “formação” (ou antes “deformação”) escolar, tem sua mulher transando com outro cara, já que com ele isso não é possível. Todos os personagens de sua vida lhe aparecem com a cara pintada de palhaços. E Pink... Pink é um peso morto, afundando em sua cadeira, assistindo tv, com uma lâmpada ao lado (é sempre esse o conjunto, uma cadeira, Pink, uma tv passando um filme de guerra, e uma lâmpada, por mais que o cenário para isso mude, sendo um quarto, um espaço vazio cheio de mato, ou a estação de trem onde estão desembarcando os sobreviventes da guerra). Pink nada faz além de segurar o mesmo cigarro já findo há muitos séculos. Ligar para sua mulher sabendo que ela está transando com outro cara e não vai atender. Assistir tv. Pink não tem mais energia sexual (e visando a análise freudiana segundo à qual isso move o homem, Pink está imóvel). A “moça safada” que tenta lhe seduzir não lhe causa desejo, mas sim um ataque abrupto e intempestivo de furor e violência, em que ele quebra todos os seus móveis e afunda a mão no vidro da janela, deixando marcas que durarão durante o resto do filme. Pink está “confortavelmente entorpecido”.
E agora?

- O delírio
Através de outra imagem de poesia absurda, o filme mostra em Pink o que pareceu ser uma revolução, mas na verdade não é. O corpo de Pink está apodrecendo, ele se assemelha a uma múmia, com várias camadas de pele fétida em decomposição recobrindo o que sobrou – ou não sobrou – dele. Então ele começa a arrancar com as mãos a sua própria pele – essa pele podre. Ele começa a arrancar, vai arrancando, com determinação e violência, e parece inclusive que vai arrancar o último pedaço de si mesmo e sumir, mas de repente, por baixo da pele podre surge outro Pink, ele remove o resto dessa pele como se fosse uma roupa, e surge. Ressurge.
Renasce. Firme, viril, imponente, Líder. Ditador, fascista, racista, anti-semita, homofóbico, preconceituoso. Ao mesmo tempo Hitler e Stálin – o símbolo que ele se cria tem dois martelos, lembrando o martelo soviético, e ele o carrega no braço, semelhante ao modo que os nazistas carregavam a suástica. Ele renasce representando todo o extremismo reacionário, todo o desprezo às minorias, todo manipulador de massas. E as massas ganham a máscara que ele próprio e suas colegas usavam na escola – lembram-se da cena que todo mundo acha que é um clipe?
Isso lembra muito um filme recente de Michael Haneke que se utiliza do mesmo argumento – A Fita Branca. A construção da mentalidade extremista começa em criança, na educação repressiva, nas instituições que nos guiam e às quais nunca estamos inerentes. Mas Haneke é objetivo, é metodológico, quase meticuloso. The Wall mostra o mesmo argumento através de uma subjetividade tão poética que como que entramos no corpo do personagem e percebemos – não apenas entendemos, mas introjetamos – como tudo isso se sucedeu. E também garante ao argumento uma carga menor disso que é um erro crucial de quase todas as análises metodológicas feitas através de obras de arte: o determinismo. De repente Pink sente náusea por esse mecanismo de esquecer o próprio muro sem precisar desconstruí-lo – criar muros em volta dos outros – e berra agonizante: STOP!
E o delírio acaba. Diferente de em “A Fita Branca”, ele não é o tema principal: apenas uma sacada genial.

- A desconstrução do muro
Findo o delírio, Pink volta a reconhecer o próprio muro. E é o momento do julgamento – em suma, um dos momentos mais fantásticos da história do cinema.
Em uma cena longa inteiramente feita em desenhos – aqueles desenhos bem exagerados e expressivos característicos do filme, os personagens da vida de Pink são chamados como testemunhas para depor. E todos eles – professor, esposa e mãe – apenas legitimam a opressão que exerciam, criticando Pink por sua dificuldade em ser feliz com isso. Ao final de uma cena belíssima, o juiz dispensa o jurado, dizendo ser todo ele desnecessário, pois o crime de Pink foi tão indignante, ultrajante, desprezível – afinal, ele fora “pego em flagrante com sentimentos quase humanos”, ele tratara tão mal aqueles que o amaram, que a pena era indiscutível. A pena máxima. Pink seria exposto. Seu muro seria derrubado.
O muro de Pink não foi desconstruído, mas explodido. As interpretações plausíveis para esses momentos finais são várias e incompletas – ainda mais se considerando o finalzinho do finalzinho, em que aparecem crianças recolhendo os destroços do que fora o muro de Pink e os guardando em caminhõezinhos de brinquedos e outros utensílios. Mas uma coisa é clara: trata-se de um filme que precisa ser visto. Pelos sensíveis, pelos apaixonados, pelos artistas. Pelos loucos e alucinados. Pelos bêbados, pelos desvairados e os inconformados. Pelos conformados. E cada um que assistir construa a sua interpretação, que será só sua. Ninguém mais olhará para si mesmo – e para o próprio muro pessoal – do mesmo jeito após The Wall.




Prêmios:

The Wall foi apresentado em 1982 no Festival de Cannes e foi um relativo sucesso de público e crítica. Ganhou BAFTA nas duas categorias às quais foi indicado: Melhor Música Original ("Another Brick in The Wall, de Roger Waters) e Melhor Som