sexta-feira, 26 de março de 2010

Pedro Almodóvar - uma análise


Almodóvar é um cineasta peculiar em muitos aspectos, sem dúvidas um dos melhores de nosso tempo, tendo em vida o devido reconhecimento que merece. Nessa pequena análise, começarei apontando determinadas características que são comuns a sua obra ou se repetem com frequência.
Almodóvar é antes de mais nada um artista – no sendo intrínseco e pleno da palavra –, contudo é essencialmente um artista do cinema. Não que ele se destoe em inovação técnicas ou recursos cinematográficos; ao contrário, sua produção, longe de se utilizar dos apetrechos e truques de mágica do pobre cinema industrial, é bastante simples. O fato, porém, é que suas obras são primordialmente a imagem, o visual. O contato quase palpável com a imagem exuberante, os figurinos trabalhados, a trilha sonora quase eloqüente, a fotografia multicolorida e quase ofuscante e a interpretação forte dos atores e, principalmente, das atrizes, torna sua arte impraticável no formato de um livro, por exemplo. Pelas mesmas características, é difícil imaginar um filme de Almodóvar em preto & branco. Sua obra é essencialmente cor, essencialmente vida, vibração, intensidade, quase uma magnitude, uma prepotência. Sua imagem nos mostra que ele se dá o valor que tem: não há humildade; não são obras que nasceram por acaso e se tornaram reconhecidas, elas nasceram pra serem reconhecidas, nasceram impactantes, nasceram fazendo estardalhaço. Como se a imagem fosse explodir da tela e nos mergulhar num prisma de cores e sons. Tudo nele é excessivo.
Diz-se do cinema como a arte em que se fundem todas as outras. Se assim o é, Almodóvar é a demonstração final e minuciosa disso.

- Pintura
A fotografia das maiores obras de Almodóvar são tão vibrante que parece de fato que o cenário foi pintado a tinta, lembrando a velha coloração em Techinocolor de clássicos de Hollywood: com a diferença que, neste, os cenários são pintados digitalmente, enquanto naquele são reais. Olhamos para uma imagem de Almodóvar; então olhamos em volta e estranhamos: o mundo não é tão colorido assim. Parece que as cores são puras, quase que incorruptíveis, parece de fato tinta. Mesmo em caso raro em que se opta por uma coloração menos reluzente e mais sombria, como em “Má Educação”, onde nos deparamos com tétricos jogos de sombras, sente-se o preciso impacto de determinada combinação de cores, como que milimetradas por um hábil pincel antes de tocarem pontualmente a tela e inundarem nossos olhos.
A contemplação estática de uma imagem almodovariana já nos acomete com uma enxurrada de sentimentos e emoções, já transmite um quê autoral. Não há indiferença.

-Música
Almodóvar cede de vez em quando à tentação fácil das trilhas incidentais tradicionais, contudo o que perpassa e marca sua obra é uma música vibrante que se associa com os demais instrumentos cinematográficos de modo a ter papel essencial na construção das emoções, sensibilidade e empatia no cerne do espectador. “Fale com Ela” não derramaria tantas lágrimas sem o forte flamenco; “Volver” não seria o mesmo sem o tango magistralmente interpretado por Penélope Cruz. A música transborda em seus filmes, quase como se assistíssemos a um concerto, mas a um concerto da eloquente música espanhola.

-Teatro e o próprio cinema
Sem cair no frio discurso metalinguistico ou na ultrapassada ironia romântica, Almodóvar aborda o teatro e o próprio cinema em vários momentos.
Uma das obras mais reconhecidas do diretor é totalmente permeada de referências e homenagens ao cinema e ao teatro. A trama de “Tudo sobre minha mãe” se desenrola após o garoto Esteban correr atrás de um autógrafo da atriz de teatro Huma Hojo (que interpreta a personagem Blanche Dubois da peça “Um Bonde Chamado Desejo”) e ser atropelado. Essa sensacional peça de Tenesse Williams terá um significado simbólico durante toda a história, já que, além do fato mencionado, foi na atuação de uma montagem amadora dessa mesma peça que os pais de Esteban se conheceram, anos atrás. Além disso, Huma Hojo é fanática por Bette Davis (afirma até mesmo ter começado a fumar por causa dela), esta que é a atriz predileta de Pedro Almodóvar, um de seus maiores ícones do cinema, segundo declaração do próprio (é possível vê-lo falando isso e outras experiências no cinema nos extras do DVD de “Volver”). O próprio título do filme, “Tudo sobre minha mãe” (título de um projeto de Esteban, que era escritor), é inspirado no maior clássico de Bette Davis, A Malvada, cujo título original, All About Eve, recebeu uma tradução nada-a-vê, fato que Esteban critica. Para completar, o filme termina com uma dedicatória a Bette Davis e “todas as atrizes que interpretaram atrizes”, entre outras coisas. E Almodóvar demonstra, como veremos depois, como de fato amava essa projeção de um filme em outro, utilizando ele mesmo em seus filmes de intricados jogos de espelhos.
“Fale com Ela”, que veio depois deste, se utiliza do teatro novamente, mas dessa vez não como referência ou homenagem, mas sim inserido de modo fundamental na construção da emotividade nos espectadores. O filme abre com uma cena de teatro e fecha com outra cena de teatro. A cena de abertura nos introduz na melancolia e intensidade que permeará todo o filme – de modo que mergulhamos de cabeça dentro do universo que nos consumirá nas próximas duas horas – e aos personagens principais, Benigno e Marco, que, ainda sem se conhecerem, por coincidência assistem à peça lado a lado. Marco, quarentão, chora, o que se mostrará significativo. A cena final une novamente dois personagens – que se conheciam mas não se conheciam – e dá um desfecho a esse universo, nos devolvendo o ar que seguramos por tanto tempo e dando liberdade para que nossas lágrimas contidas finalmente aflorem.
“Má Educação”, que por sua vez veio depois deste, tem como protagonistas dois amigos: um diretor de cinema e um ator. Este, de nome Ignácio, escreveu um roteiro cuja primeira parte é baseada na infância dos dois em um internato católico; roteiro que será filmado por aquele, o Enrique. Aparentemente um caminho fácil para uma obra puramente metalingüística, mas não é nada disso. Contudo, o que está presente, e marcante, é arte do “ator que interpreta um ator” – aliás Gael García Bernal acaba desenvolvendo ao longo da trama três papéis. Além disso, um episódio marcante da infância dos dois amigos ocorre numa sala de cinema.
Em “Volver” – que veio depois de “Má Educação” – a referência ao cinema é menor e menos significativa, mas está presente: é graças a um grupo de 25, 30 pessoas que estava gravando um filme nas proximidades que Raimunda se apossa do restaurante de Emílio. Claro que não poderia ser um grupo de engenheiros, de estudantes ou de qualquer outra coisa.
O último filme de Almodóvar, “Abraços Partidos”, conta a história de Harry Caine, um cineasta que perdeu sua visão e seu nome. Um olhar de Almodóvar sobre si mesmo – o filme de Harry Caine cuja produção movimentará o enredo é uma referência inconfundível a “Mulheres à beira de um ataque de nervos –, num momento melancólico de sua vida, quando passava por uma espécie de crise existencial. Além de, nas palavras do próprio diretor, ser uma “declaração de amor a Penélope Cruz”.

-Literatura
Essa arte milenar se expressa no trabalho preciso do roteiro, com uma dolorida marca autoral, tramas minuciosamente articuladas, personagens profundos e fortes e a abordagem de vários temas, dentre os quais talvez o que mais se destaque seja a sexualidade.
A construção da trama dos filmes de Almodóvar não segue a linha que se tornou marca do cinema europeu: uma história com poucos acontecimentos objetivos a fim de se obter enfoque na subjetividade dos personagens. Tampouco segue a linha norte-americana, com muita ação e personagens superficiais ou caricatos. Pode-se dizer que seu cinema, um fenômeno isolado, une essas duas tendências, na medida que suas histórias são repletas de acontecimentos, reviravoltas de trama, altas revelações, uma linguagem rápida e prática, e ao mesmo tempo confere aos personagens um amplitude psicológica e emotiva extremamente humana. O fato é que o enredo é trabalhado, talhado de modo preciso e pontual, afim de, usando como artífice sucessivos “bums” no desencadeamento da ação, fazer com que a alma dos personagens seja desvendada de modo progressivo e gradual. São como máscaras que caem uma a uma a cada reviravolta da trama, a cada revelação. Cada vez que nos surpreendemos e nos extasiamos com um acontecimento súbito, também conseguimos, por consequência, enxergar mais profundamente o personagem com o qual estamos lidando. Para que assim se dê, não é necessário o apego à cronologia da história, fato que muitas vezes torna o trabalho preciso do enredo ainda mais complexo, como é marcante em “Fale com Ela” e, principalmente, em “Má Educação”.
Alguns exemplos de como a ação prática, as reviravoltas de trama servem quase que como pretexto para um aprofundamento progressivo dos personagens se têm em “Tudo sobre minha mãe”. Quando se descobre que Rosa, a freira interpretada por Penélope Cruz, está grávida, descobrimos muito sobre ela. Ou quando descobrimos que o pai de Esteban é um travesti, muito é compreendido não apenas acerca dele, mas acerca da própria mãe de Esteban. Em “Fale com Ela”, o fato inusitado de Benigno fazer sexo com a Alicia em coma nos proporciona uma visão extremamente profunda e delicada desse personagem tão peculiar. Todos esses fatos que, nas mãos de um diretor banal, se transformariam em discurso moralista e entretenimento sensacionalista, aqui são tratados de modo muito sensível, quase como se analisássemos os personagens com uma lupa, de longe, com medo de tocarmos-lhes.
Tudo isso é possível porque Almodóvar exprime em sua obra uma forte marca autoral – como nas melhores obras de arte. Não em aspectos autobiográficos – apesar dele ter passado a infância na pequena vila de “Volver” e ter estudado em um internato como em “Má Educação” – mas na sensibilidade e na empatia que são transmitidas, no modo de ver a vida e na expressão da sexualidade que é marcante em toda sua obra, quem sabe desde sua origem.


Passando por sexualidade e outros tópicos, farei a seguir uma pequena lista de temas que se repetem durante a carreira de Almodóvar.

- A “primeira vez” traumática
O personagem de Antônio Bandeiras em “O Matador” tenta estuprar uma moça para perder a virgindade, mas devido à própria falta de experiência ele não consegue, “gozando para fora”.
Victor Plaza (Liberto Rabal) , de “Carne Trêmula”, se apaixona pela moça com a qual perdera a virgindade, para a qual aquilo não passara de um sexo casual, fato que desenrola toda um trama cheia de reviravoltas.
O menino Ignácio, de “Má Educação”, vê seu primeiro amor em Enrique, mas, traumaticamente, tem sua primeira vez, muito cedo, com seu professor de literatura, um padre pedófilo.

-O homossexualismo
O sexo homossexual é explícito em “A Lei do Desejo”, um filme magnífico para quem estava praticamente no início da carreira.
Na fase mais madura do diretor, o homossexualismo é abordado de diferentes formas: da delicada sensibilidade de “Tudo sobre minha mãe” ao quase tétrico de “Má Educação”. Em todos os casos a análise é profunda e bem articulada. O homossexual nunca é tratado de modo apático (a “pobre e indefesa minoria que é vítima dos preconceitos sociais”), muito menos de modo grosseiro (com preconceito). Ele é um ser humano, com as fragilidades de um ser humano, mas também com a força e intensidade de seres humanos almodovarianos, apaixonados. Almodóvar, ele próprio homossexual, sabia com o que estava lidando.

-Abuso sexual
Também leva várias abordagens: a ingenuidade do “Matador”, a paixão delicada de “Fale com Ela”, a paixão sombria e doentia de “Má Educação”, o desejo impulsivo de “Volver”

-Consumo de drogas
Almodóvar é um dos raros cineastas que consegue retratar as drogas ao mesmo tempo sem complacência e sem moralismo: apenas com a realidade.
Nina (Candela Peña) de “Tudo sobre minha mãe” é uma atriz de teatro que vive uma crise pessoal e profissional devido a sua dependência de heroína. O Ignácio travestido de “Má educação” se torna um fardo para a família devido, em grande parte, ao mesmo motivo. Já Agustina (Blanca Portillo, estreante no universo almodovariano), é mostrada fumando seu baseado em “Volver” de modo bastante descontraído e despretensioso, até um pouco cômico.
A referência às drogas aparece em muitos outros momentos em outros filmes.

-Religiosidade
O quase fanatismo católico que acomete a península Ibérica até hoje é encarada sob um viés crítico por Almodóvar (que se declara agnóstico). Contudo, não podemos considerá-lo um “anti-clerical”, e é exatamente esse o ponto em que ele ganha autoria e originalidade: criticar a hipocrisia sem cair na outra hipocrisia que é o olhar unilateral de muita “esquerda festiva”.
Almodóvar critica a instituição, mas mostra os seres humanos como falhos, não maus. Em nenhum momento a freira Rosa, de “Tudo sobre minha mãe”, é julgada aos olhos do espectador por ter engravidado. Porque conseguimos enxergá-la como ser humano antes de enxergá-la como freira. Até Manolo, o padre pedófilo de “Má Educação”, é visto sob uma ótica de sensibilidade, que aprofunda psicologicamente o personagem até que todas as suas ações aparentemente desumanas se tornem compreensíveis (não justificáveis, mas compreensíveis), e, afinal de contas, já que oriundas de uma personalidade complexa e permeada de oscilações, essencialmente humanas.
Almodóvar não combina com filme panfletário. Ele não fecha a mente para um julgamento – como se um ser humano tivesse capacidade de julgar outro –, mas a abre para que absorva a transbordante amplitude que é a contraditória e amoral alma humana.
E se, por um lado, consegue ser crítico, por outro, consegue ser bem ameno: Victor Plaza, tão apegado a sua Bíblia, consegue ser apesar de tudo tocante e carismático, causando uma sensível empatia no espectador de “Carne Trêmula”.

-Universo feminino (?)
Muitos críticos apontam na obra de Almodóvar a abordagem intimista do mundo feminino (isso mesmo, à lá Chico Buarque), que teria um embrião no clássico “Mulheres à beira de um ataque de nervos”. Contudo, reparei que, curiosamente, a “abordagem ao mundo feminino” e a ao mundo masculino estão até bem equilibrados: primeiro que “Mulheres à beira de um ataque de nervos”, por ser uma comédia despretensiosa, não apresenta mais que uma caricatura cômica do que se chama “universo feminino”. Dentre os filmes realmente eficientes e profundos nessa tal abordagem destacar-se-ia “Tudo sobre minha mãe” e “Volver”. Enquanto isso, filmes como “Carne Trêmula”, “Fale com ela”, “Má Educação” são exemplos maravilhosos de filmes com perspectivas masculinas. Não consigo perceber porque o viés feminino seria uma marca registrada de Almodóvar, e discordo dessa afirmação.

-Amizade passional
Marco e Benigno de “Fale com ela” e Ignácio e Enrique de “Má Educação” são apenas exemplos de amizades profundamente passionais e permeadas de conflitos. Também se poderia citar os protagonistas de “Carne Trêmula” e mesmo os de “A Lei do Desejo”.****

-Outros (menos comuns)
Almodóvar já afirmou odiar esses “programas de televisão que promovem a fama pela fama”. E ele chega a mostrar isso em retratos profundamente cruéis e satíricos desse universo televiso nos filmes “Fale com ela” e em “Volver”.
A senilidade também pode ser apontada na obra almodovariana, já que velinhos caducos aparecem até com certa frequencia. Lucia (Julieta Serrano), de “Mulheres a beira de um ataque de nervos”, é retratada com uma arma na mão de modo cômico e descontraído. O pai da freira Rosa, em “Tudo sobre minha mãe”, é a melhor abordagem que Almodóvar conseguiu, traduzindo de modo sensível e até emocionante um senhor que não reconhece a filha e tem um ciúme possessivo, porém inofensivo e ingênuo, pela mulher. A senilidade aparece novamente na tia Paula de “Volver”.



Abordagem individual
Na obra de Almodóvar os temas polêmicos deixam o universo social e passam para o individual. Desse modo, nunca se apossam da trama (tendência fácil para o filme panfletário), mas são utilizados por ela, de modo a enriquecê-la. A sexualidade, as drogas, a religião: tudo isso é abordado de modo a enfocar a repercussão na vida, na personalidade e nos desejos dos personagens, não sua repercussão social. O coletivo não interessa nos filmes de Almodóvar. Um exemplo é o modo como o tema da doação de órgãos, abordado no início de “Tudo sobre minha mãe”, é desenvolvido. Com grande tendência para cair num discurso, seja a favor, seja contra a doação de órgãos, sucede-se uma abordagem intimista do efeito que a doação dos órgãos do filho morto acarretou em Manuela. “Fale com ela” não chega perto de cair numa discussão sobre eutanásia. Nem “Carne Trêmula” em uma sobre deficiência física (não há aquele enfoque batido na tal da ética, que, por ser só um chavão formal e não se aplicar na vida humana em si, não lhe interessa). Até mesmo o ataque ao catolicismo é transposto pelos enredos para o plano individual e intimista. Não há política nos filmes de Almodóvar. Mesmo assim, ele causou incômodo à crítica espanhola, segundo a qual seus filmes faziam um retrato falso da Espanha e o vendiam como fidedigno. Prova que para os mais reacionários é difícil até mesmo conceber a própria essência humana: a amoralidade, o desejo, as contradições psicológicas, coisas intrínsecas, decaíram ao patamar de heresias.



Paixão
Os personagens são essencialmente humanos, humanos porque têm paixão. Eles não são arrastados pela vida, não são passivos, eles são a própria vida, são violentos, são viris. Antônio Bandeiras amarrando Victoria Abril numa cama até que ela o ame, em “Ata-me”, é paixão. Javier Câmara (em “Fale com Ela”) conversando todo dia com uma moça em coma que, quando lúcida, nunca lhe dera atenção, transando com ela e planejando casar-se: isso é paixão. Creio que Almodóvar nunca fez um filme sobre amor. Mas sua obra é a própria paixão, exposta através da arte que é o cinema.


-Análise comparativa: “Má Educação” e “Volver”


Escolhi esses dois filmes para desenvolver um pouco porque foram feitos um em seguida do outro e foram ambos recebidos do jeito errado: “Má Educação” recebeu muito menos atenção e crédito do que deveria e “Volver” recebeu mais.
“Má Educação” sofreu reservas mesmo antes de seu lançamento, já que o conservadorismo espanhol (um país até hoje dominado pelo catolicismo) julgou que ele faria um filme anticlerical. Claro que não é nada disso. O próprio Almodóvar fez um comentário engraçado: “Isso não faz falta [o filme não ser anticlerical]. A Igreja degrada-se a si mesma cada vez que faz declarações à imprensa. Ao menos na Espanha, o pior inimigo da Igreja é ela mesma”.
Na mesma entrevista, realizada em Cannes, Almodóvar explicou que baseou o título do filme na educação que ele e outros espanhóis receberam, fundada no medo, no castigo, no sentimento de culpa. “A educação perfeita para psicopatas. É um milagre que eu tenha crescido normal”. Não que seja uma obra autobiográfica; ele mesmo afirmou não ser, apesar de ter estudado em ambiente semelhante e vivido na Madri dos anos 80, fatos que dão autoria, algo essencial a todo filme artístico.
Tudo isso são exemplos de como “Má Educação” é abrangente, explorando vários temas sem cair no discurso panfletário e conseguindo ser extremamente sensível, conforme demanda o cinema almodovoriano. Ao mesmo tempo, contudo, o filme nos poupa daquela sensação de “já vimos isso”, ao mostrar um Almodóvar bastante diferente: longe de ser uma figura unilateral, ele consegue ser sombrio, consegue abafar suas cores. E provavelmente isso mesmo que tenha assustado, provocando no público uma certa desconfiança, e tenha impedido uma recepção maior e mais calorosa. Hoje é uma de suas obras menos conhecidas, apesar de ser razoavelmente recente (2004)
Ao contrário de “Volver”, que já podemos chamar de clássico apesar de ser de 2006. A volta de Almodóvar à estética multicolorida e descontraída foi acolhida de braços abertos, contudo este está longe de ser um de seus melhores filmes do estilo (embora, claro, esteja absolutamente longe de ser um filme ruim).
Penélope Cruz, por exemplo, consegue uma boa atuação, como sempre, mas não consegue encarnar de fato uma personagem com os traumas que ela tem. Talvez seja exigir demais dela – após vê-la como a freira de “Tudo sobre minha mãe” é natural que acabemos lhe cobrando muito. Ou talvez a falha nem mesmo dela seja: o próprio filme simplesmente jogue a história do abuso pelo pai de modo um tanto desfalcado, pela mera necessidade de se conseguir uma revelação inesperada que chocasse e explicasse algumas brechas na parte objetiva do enredo. Explica-se tais brechas, contudo não choca. Não choca porque não enxergamos na personagem de Penélope Cruz uma pessoa que sofreu abuso do pai. Não enxergamos nela nem alguém que sofre por isso, nem alguém que reprime isso. Nem alguém que sublime nem nada do tipo. Simplesmente não enxergamos esse abuso nela. E tudo o que essa revelação dramática tira do público é um “ahhhhhh” de compreensão. Nada de lágrimas ou mesmo um mínimo de empatia.
Do mesmo modo, a filha de Raimunda não parece ter matado o “pai”. Até nos esquecemos disso durante o filme. Lembramo-nos disso apenas num momento, quando ela grita algo como “acha que é fácil pra mim ter matado meu pai?”, ao que sua mãe responde “Ele não era seu pai. Depois da festa te conto tudo”, lembrando vagamente o começo de “Tudo sobre minha mãe”. Felizmente a menina não é atropelada.
Tudo isso é culpa das atrizes? Ou da direção?
E por que afinal de contas a avó Irene não conta para sua filha, Sole, que definitivamente não é um fantasma?
“Volver” não é um mal filme. Nessa fase de sua carreira, Almodóvar nem se quisesse realizaria filmes ruins – embora o ainda mais recente “Abraços Partidos”, de 2009, também não seja de seus melhores filmes, recebendo, dessa vez, a recepção adequada (não gerou muito entusiasmo no festival de Cannes). “Volver” desenvolve alguns temas, mostra um interessante panorama da vida em vilas em contraste com a vida das grandes cidades, evidenciando o caráter supersticioso; também tem um roteiro inteligente, como sempre, além de nos deliciar com momentos lindos, mantendo sua estética descontraída que torna o filme saboroso.
Mas lhe falta bastante para ser tudo o que a recepção lhe exaltou, e tudo o que um Almodóvar promete. E isso pode pesar ao diretor, mas não sejamos cínicos: a essa altura, é já impossível que um Almodóvar não prometa muito.



prêmios:

- Recebeu uma indicação ao Oscar de Melhor Diretor, por "Fale com Ela" (2002).

- Ganhou o Oscar de Melhor Roteiro Original, por "Fale com Ela" (2002).

- Recebeu 2 indicações ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, por " Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos" (1988) e "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999). Venceu em 1999.

- Ganhou o BAFTA de Melhor Diretor, por "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999).

- Recebeu uma indicação ao BAFTA de Melhor Roteiro Original, por "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999).

- Recebeu 3 indicações ao BAFTA de Melhor Filme Estrangeiro, por "Carne Trêmula" (1997), "Mulheres À Beira de um Ataque de Nervos" (1988) e "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999). Venceu em 1999.

- Recebeu uma indicação ao Independent Spirit Awards de Melhor Filme Estrangeiro, por "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999).

- Recebeu 3 indicações ao Cesar de Melhor Filme Estrangeiro, por "Ata-me!" (1990, "De Salto Alto" (1991) e "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999). Venceu em 1991 e 1999.

- Ganhou um César honorário, em 1999.

- Recebeu 3 indicações ao European Film Awards de Melhor Diretor, por "Fale com Ela" (2002), "Má Educação" (2004) e "Volver" (2006). Venceu por "Fale com Ela" e "Volver" .

- Recebeu 3 indicações ao European Film Awards de Melhor Diretor - Júri Popular, por "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999), "Fale com Ela" (2002) e "Má Educação" (2004). Venceu por "Tudo Sobre Minha Mãe" e "Fale com Ela".

- Recebeu 2 indicações ao European Film Awards de Melhor Roteiro, por "Fale com Ela" (2002) e "Volver" (2006). Venceu por "Fale com Ela".

- Recebeu 7 indicações ao Goya de Melhor Diretor, por "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos" (1988), "Ata-me!" (1990), "A Flor do Meu Segredo" (1995), "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999), "Fale com Ela" (2002), "Má Educação" (2004) e "Volver" (2006). Venceu por "Tudo Sobre Minha Mãe".

- Recebeu 5 indicações ao Goya de Melhor Roteiro Original, por "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos" (1988), "Ata-me!" (1990), "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999), "Fale com Ela" (2002) e "Volver" (2006). Venceu por "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos".

- Ganhou o Grande Prêmio Cinema Brasil de Melhor Filme Estrangeiro, por "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999).

- Ganhou o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Cannes, por "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999).

- Ganhou o Prêmio do Júri Ecumênico no Festival de Cannes, por "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999).

- Ganhou o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cannes, por "Volver" (2006).

- Ganhou o prêmio Teddy de Melhor Filme de Lançamento, no Festival de Berlim, por "A Lei do Desejo" (1987).

- Ganhou em 1988 o prêmio Osella de Ouro, no Festival de Veneza, por seu trabalho como roteirista em "Mulheres À Beira de um Ataque de Nervos" (1988).

- Ganhou o Kikito de Ouro de Melhor Diretor, no Festival de Gramado, por "De Salto Alto" (1991).

- Recebeu uma indicação ao Kikito de Ouro de Melhor Filme Íbero-Americano, no Festival de Gramado, por "De Salto Alto" (1991).

- Ganhou em 2000 o Prêmio International Filmmaker, no Festival Internacional de Palm Springs.

- Ganhou o prêmio FIPRESCI de Filme do Ano, no Festival Internacional de San Sebastián, por seu trabalho em "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999).

- Ganhou o Prêmio Escolha do Público, no Festival Internacional de Toronto, por "Mulheres À Beira de um Ataque de Nervos" (1988).

- Recebeu uma indicação ao Satélite de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, no Festival Golden Satellite, por "Carne Trêmula" (1997).

- Ganhou o Prêmio Bodil de Melhor Filme Não-Americano, por "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999).

- Ganhou o Prêmio Círculo Precolumbiano de Ouro, no Festival de Bogotá, nas categorias de Melhor Diretor e Melhor Roteiro, por "A Lei do Desejo" (1987).

- Ganhou o prêmio de Melhor Filme Estrangeiro, no German Film Awards, por m "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999).

- Recebeu uma indicação ao Ariel de Prata de Melhor Filme Latino-Americano, no Festival da Academia do México, por "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999).

- Ganhou o prêmio Internacional Fantasi Film de Melhor Diretor, no Fantasporto, por "Matador" (1986).

Nenhum comentário:

Postar um comentário