sexta-feira, 16 de abril de 2010

A Ilha do Medo


• título original:Shutter Island
• gênero:Suspense
• duração:02 hs 28 min
• ano de lançamento:2010
• site oficial:http://www.shutterisland.com/
• estúdio:Paramount Pictures / Sikelia Productions / Phoenix Pictures / Hollywood Gang Productions / Appian Way
• distribuidora:Paramount Pictures
• direção: Martin Scorsese
• roteiro:Laeta Kalogridis, baseado em livro de Dennis Lehane
• produção:Brad Fischer, Mike Medavoy, Arnold Messer e Martin Scorsese
• fotografia:Robert Richardson
• direção de arte:Max Biscoe, Robert Guerra e Christian Ann Wilson
• figurino:Sandy Powell
• edição:Thelma Schoonmaker
• efeitos especiais:New Deal Studios / CafeFX / Gentle Giant Studios / Mark Rapaport Creature Effects
elenco:
• Leonardo DiCaprio (Teddy Daniels)
• Mark Ruffalo (Chuck Aule)
• Ben Kingsley (Dr. John Crawley)
• Emily Mortimer (Rachel Solando)
• Michelle Williams (Dolores Chanal)
• Max Von Sydow (Dr. Jeremiah Naehring)
• Jackie Earle Haley (George Noyce)
• Elias Koteas (Andrew Laeddis)
• Ted Levine (Warden)
• John Carroll Lynch (Deputado Warden McPherson)
• Christopher Denham (Peter Breene)
• Nellie Sciutto (Enfermeira Marino)
• Curtiss Cook (Trey Washington)
• Tom Kemp (Ward C. Guard)
• Drew Beasley (Henry)
• Joseph McKenna (Billings)
• Damian Zuk (Elijah Tookey)
• Patricia Clarkson
Nota: 8,0 (parâmetro/categoria: suspense)

O renomado Martin Scorsese atinge em Ilha do Medo um dos maiores picos de sua força criativa, de sua poesia e de sua intensidade formal. Tratando com muito respeito o tão delicado tema que perpassa incólume tantos anos na tradição do cinema clássico.

- O ciclo
O tema da loucura teve seu berço em 1919 no país que acabara de sair humilhado da primeira grande guerra do século XX. O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Weine, um clássico que marcará eternamente presença na estante de qualquer cinéfilo, é o filme pioneiro da vanguarda que marcou o cinema alemão, o expressionismo. Usando a estética do suspense, O Gabinete do Dr. Caligari é narrado sob o ponto de vista de um louco que delira uma conspiração contra ele; e no final da trama saímos de dentro de sua mente e percebemos o que realmente se passa.
Muito tempo depois, o tema da loucura atingiu seu ápice. O norte-americano Uma Mente Brilhante, de 2001, arrebatou os mais badalados prêmios do Oscar (filme, diretor e roteiro adaptado, além de melhor atriz coadjuvante para Jennifer Connelly), usando determinados aspectos da estética do suspense para narrar sob o ponto de vista de um esquizofrênico uma suposta conspiração; e no final da trama saímos de dentro da sua mente e percebemos o que realmente se passa.
Agora, em 2010, Martin Scorsese lança A Ilha do Medo. O ciclo se fecha.
E qualquer coisa que se faça sobre semelhante tema a partir de então se mostrará desnecessário ou minimamente artificial.


- A loucura no século XXI
A Ilha do Medo é construído com uma meticulosidade técnica imprescindível. Cada passagem, cada enquadramento, cada gesto dos atores é talhado de modo a transmitir a sensação exata. E assim Scorsese constrói uma atmosfera progressiva e gradual de tensão, de despertencimento, de absurdo, conforme faz e desfaz a teia de acontecimentos, conforme reconstrói cada perspectiva, brinca com referenciais e joga com a linearidade e a percepção dos fatos. Não é um filme que pretende passar algo; ele quer nos absorver para dentro dele, quer nos tornar seu protagonista. A cada tomada nos sentimos mais estupefatos, mais assustados, de fato mais loucos, mas ao mesmo tempo mais certos de nosso isolamento num mundo que, ele sim louco, transforma os poucos sãos em ilhas. Em ilhas de medo.
Pois, antes de ser um filme sobre loucura, trata-se de um filme sobre solidão – tema que Scorsese trabalha tão bem desde a obra-prima Taxi Driver. Fazendo uso de uma tétrica poesia, todo o universo que ampara o homem vai se desconstruindo, até que ele se vê não apenas só, mas perseguido, acuado. O homem moderno, frágil, totalmente incapaz de lidar com as próprias fraquezas. O homem que não aceita seu passado, não compreende seu presente e não se vê no futuro. O homem niilista. O homem com medo, aprisionado numa ilha donde não pode escapar: o mundo.
Na dicotomia que reluta em pousar a loucura sobre a sociedade ou sobre o indivíduo, Scorsese assume a postura dos que lhe legaram o cinema, mesmo que para isso se mostre sob certo aspecto conservador. Se o Dr. Caligari não é um diretor de hospício maníaco, mas um homem bom que quer ajudar seus pacientes, e se Weine não se preocupa em manter o tom anti-autoritarista tão essencial naquele pós-guerra, tampouco os diretores do hospício Ashecliffe são conspiradores que realizam experiências com os pacientes (ao estilo nazista); tampouco Scorsese preocupou-se em manter o tom anti-imperialista tão essencial neste pós-nada em que vivemos. Tratamos aqui, ironicamente, de um indivíduo louco num mundo são (voltarei a isso no próximo tópico).
Em certo sentido, pode-se dizer que A Ilha do Medo é o próprio Gabinete do Dr. Caligari do século XXI. Longe de ser um plágio; o fato é que o profundo impacto, ou melhor dir-se-ia espanto, causado no público naquele estágio inicial da arte cinematográfica é reproduzido com assustadora eficácia nesse que talvez seja o estágio final, fatal e derradeiro da arte cinematográfica. Hoje, após tantas décadas de desgaste e tanto ataque do cinema industrial, o cinema artístico sofre um processo de banalização devido ao qual uma projeção do Dr. Caligari não provocaria mais do que uma indiferença com algum toque de tédio. Quem quer ver um filme preto-e-branco, mudo, e ainda por cima vanguardista?
Nesse cenário, Scorsese recupera o espanto, a estranheza, numa obra que, com todos os recursos do seu século, consegue provocar num público que perdeu em empatia aquela mesma sensação de despertencimento que fez os alemães do pós-guerra se indagarem sobre os alicerces da própria lucidez. O filme de Scorsese nos torna sensitivos, faz-nos absorver sensações e traumas num mundo que quer domar nossa sanidade através da razão. Por que, afinal, não apenas acreditamos, mas aceitamos e nos solidarizamos com a loucura de Teddy Daniels (um sublime e espetacular Leonardo DiCaprio nunca imaginável nas épocas de Titanic) tão facilmente? Por que somos tão tendenciosos a compactuar com todo o seu delírio? Por que, mesmo no final, quando nos deslocamos de dentro da mente de Teddy para um plano onisciente, ainda assim relutamos em acreditar que aquilo tudo em que acreditamos era irreal? Por que relutamos tanto em sair da mente do louco?
Até que ponto vai nossa própria sanidade? Até que ponto somos racionais?


- Subjetividade e individualidade: concluindo.
São raras as obras que conseguem abordar determinado tema concomitantemente pela perspectiva social e pela individual. Não constituindo isso necessariamente um defeito, mas uma questão de enfoque, A Ilha do Medo, ao abordar loucura e solidão, é absolutamente complacente com o contexto social que torna os seres humanos loucos e solitários (afinal, não perdemos a sanidade propositalmente).
As origens da loucura de Teddy Daniels são domésticas, e não apenas domésticas, mas subjetivas. Assim, o enfoque individualista da loucura contrasta com a outra obra de Scorsese sobre semelhante tema: Taxi Driver, que retrata um homem cuja “solidão cercada por pessoas” no claustrofóbico ambiente de Nova York lhe tirou todos os resquícios de sanidade (os dois filmes se encontram apenas no protagonista veterano de guerra). E contrasta, por exemplo, com um Stanley Kubrick, O Iluminado, que acompanha a sanidade sendo desconstruída pelo ambiente social no qual o homem moderno se insere: amplo, com tantos espaços disponíveis, mas ao mesmo tempo sem nada para preenchê-los.
Assim, ao seu modo, A Ilha do Medo alcança algo que lhe é peculiar: mostrar ao homem moderno, a despeito do mundo que o cerca, a loucura que reside dentro dele. Todos nós, em algum momento de nossa vida interior, subjetiva e não-cronológica, todos nós afogamos nossos próprios filhos. E nos abortamos do mundo.

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